Estante da Sala

[8º Olhar de Cinema] Diz a Ela Que Me Viu Chorar

Esta crítica faz parte da cobertura do 8ª Olhar de Cinema- Festival Internacional de Curitiba, que ocorre entre 5 e 13 de junho na cidade. 

Dirigido por Maíra Bühler, Diz a Ela Que Me Viu Chorar propõe uma reflexão sobre o cotidiano dos moradores do Braços Abertos, um projeto de redução de danos para pessoas com vícios, especialmente álcool e e crack. O Hotel Social, como era chamado, abrigava pessoas que precisavam de cuidados, sob três pilares; moradia, trabalho e saúde, buscando minimizar os efeitos negativos do vício. Segundo o próprio filme, foram 20 meses frequentando o local, por onde passaram 105 pessoas.

O filme parece tentar resgatar os aspectos de humanidade dos retratados, que muitas vezes são animalizados pela sociedade. Há afeto e há amor: alguns casais são retratados em conversas íntimas, em abraços apertados, em devaneios sobre o futuro. Esses momentos emocionam e dão uma noção maior de quem são essas pessoas e o que aspiram. Há cuidado e auto-cuidado, como os exercícios físicos flagrados na escada e uma sobrancelha sendo diligentemente desenhada. Há reflexões sobre a vida e a morte: um dos moradores, no dia de finados, sem saber se o pai ainda estaria vivo, fala sobre a brevidade que é viver. Há os momentos de solidão e o Natal sem a família aparece como um deles. Mas há, também, os momentos de confraternização e alegria.

Embora o processo de produção das imagens pareça ser praticamente etnográfico, a abordagem antropológica aparentemente não foi levada em conta. Já em 1986 o livro Writing Culture, de James Clifford, colocava em cheque a suposta neutralidade de quem autora uma etnografia após o trabalho de campo. A crítica não diz respeito apenas à Antropologia, mas, nessa perspectiva pós-moderna, busca descolonizar modos de olhar e retratar o outro. Não existe observação participante neutra: toda pessoa está posicionada dentro do campo e o processo de montagem que daí se origina parte desse posicionamento. A câmera, nesse caso, nunca será invisível.

Bühler tenta trabalhar com essa câmera neutra e a aparente neutralidade perturba. Ela, como alguém que observa de longe, está ligada capturando as imagens sem parar. Em determinado momento, uma briga entre dois moradores é iniciada e ela segue rodando, mesmo quando a briga sai de campo e é possível ouvir objetos sendo quebrados. Depois o corpo inconsciente de um dos homens é registrado no chão. Tudo isso acontece com a frieza e distanciamento de um olhar que não se envolve. Não há interação, apenas, por vezes, vozes da equipe flutuando naquele espaço. E nesse distanciamento, as pessoas que vivem ali aparecem retratadas como o “outro exótico” que não faz parte da realidade do olhar da câmera, trazido para o espectador. Talvez por isso um dos momentos mais interessantes do filme é quando a equipe está no elevador, ainda que fora de campo e, subindo e descendo junto com os moradores, captura a interação deles entre si e com o equipamento, trazendo-o para um lugar de visibilidade e deixando claro os processos de conhecimento e reconhecimento ali implicados.

Em alguma medida é possível dizer que a regra número um de um trabalho antropológico é jamais prejudicar os seus interlocutores. Mas aqui, não é antropologia, é cinema, fato confirmado quando a diretora, em sua fala, chama as pessoas retratadas não de interlocutoras, mas de personagens. Ainda assim, depois de décadas de reflexão sobre a impossibilidade de autorar de forma invisível e da responsabilidade de quem trabalha com alteridade, é difícil digerir um retrato como esse, mesmo que bem intencionado. Além disso ainda há todas as discussões sobre as possibilidades de autoria compartilhada, que foi, mesmo, descartada pela autora quando afirmou que quis entregar câmeras para as pessoas retratadas, mas elas não quiseram. Mas e a montagem? Será que as cenas escolhidas são aquelas que elas gostariam de ver sobre si mesmas? Se a escolha das imagens é deliberada e parte da autora, qual o discurso que ela cria sobre essas vidas?

Durante os fogos de Ano Novo, Benedita, uma das mulheres que lá morava, sem sua esposa, está sentada no chão olhando para o vazio a sua frente. Que vida nova esse ano novo traz? O filme termina com um letreiro que afirma que o prefeito que assumiu o cargo na cidade de São Paulo em 2017 terminou com o programa e a maior parte das pessoas foi morar na rua. Embora a proposta aqui pareça ser a de defesa do projeto, há uma certa ambiguidade causada pelo retrato oferecido.

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