Estante da Sala

Noé (Noah, 2014)

O antropólogo alemão Franz Boas afirmou que o mito tem origem histórica e se baseia no cotidiano do próprio povo que o criou. Por outro lado, defendeu que ele pode se espalhar através de difusão para outros povos que tenham proximidade geográfica. Ainda assim, seria possível encontrar relatos similares entre povos sem contatos anteriores, mesmo que sem uma causa primária semelhante ou uma significação semelhante. Grande parte dos povos da antiguidade buscavam se fixar nas proximidades de rios, porque facilitava a obtenção de água e alimento. Assim, eventualmente, uma cheia periódica poderia ser maior do que as normais, levando a busca por uma explicação que geraria diversos mitos de dilúvios. Um deles é o mito judaico, também presente na crença cristã. O fato desta história ter significado religioso para grande parte da população ocidental é provavelmente o maior ponto gerador de falta de compreensão relacionado ao filme Noé, dirigido por Darren Aronofsky.

Primeiramente é preciso ressaltar que o filme não é uma adaptação direta da história bíblica, mas sim de uma reimaginação feita para quadrinhos pelo próprio Aronofsky. De qualquer forma é preocupante a falta de entendimento do que significa a palavra “adaptação”, ou, pior, a falta de entendimento seletiva, visto que adaptações de outras mitologias raramente geram controvérsias quando ocorrem alterações em relação à fonte.

noah graphic novel

Dito isto, Noé é sim um bom filme. Falho, certamente, mas forte e interessante. O personagem-título, interpretado por Russel Crowe, da décima geração após Adão, acredita estar recebendo em sonhos mensagens do Criador (chamado desta forma ao longo de todo o filme). A humanidade estava destruindo a criação e a solução para isso seria removê-la da Terra através de um Dilúvio e  então recomeçar. O mundo se divide entre os descentes de Caim, liderados por  Tubal-cain (Ray Winstone), e os de Seth, terceiro filho Adão e Eva. A família de Noé seria a última dessa linhagem. Ele seria o escolhido para executar essas ordens e construir uma grande arca para abrigar sete pares de cada animal puro e dois pares de cada animal impuro, de maneira a repovoar o planeta. Uma das diferenças entre os descendentes de Seth e os de Caim é que os segundo alimentam-se de carne, por acreditar que esta lhe dá força, enquanto os primeiros apenas se alimentam de ervas e frutas. Embora tenha visto muitas reclamações a respeito desse retrato, ele seria biblicamente apurado na interpretação literal, visto o ser humano foi criado (em uma visão bastante antropocêntrica) para reinar (cuidar e proteger) sobre os animais e só receberia autorização para se alimentar deles após o dilúvio, quando grande parte da vegetação morreu submersa. Por isso a ordem de levar sete pares dos animais puros, que são os animais “kosher”, aqueles aptos a serem ingeridos na tradição judaica.

Matusalém (Anthony Hopkins), avó de Noé, aparece aqui como uma espécie de conselheiro da família. Quando Noé está em dúvida sobre como prosseguir, consulta-o e este o entrega uma bebida que afirma ser um chá, bastante escuro. Impossível não pensar, neste momento, nas religiões baseadas na ayahuasca, em que o chá é bebido e a pessoa passa a ter mirações (visões), sendo que uma cobra brilhante é presente em diversos relatos, tendo especial significação entre os povos indígenas que fazem uso ritual. Não é de se estranhar, visto que o filme parece tomar uma vertente bastante gnóstica do mito, cheia de dualismos místicos. Noé novamente adormece para então ver uma serpente cintilante, aquela do Jardim do Éden e então receber a confirmação das ações a serem tomadas. A serpente vem, depois, a ter importância simbólica, quando seu couro é utilizado para simbolizar a liderança da humanidade através dos primogênitos, enrolado ao braço com um tefilin da tradição judaica.

Repetidamente flashes de imagens da maçã, da serpente e de Caim matando Abel, acompanhadas de um ruído agudo, se inserem em meio à narrativa. Ao mesmo tempo mostram um passado da humanidade que parece nos destinar ao erro e um momento em que a estética de Aronofsky se faz fortemente presente, pois esse tipo de corte rápido, quase publicitário, costuma aparecer em seus filmes. Aliás, em se tratando de autoralidade, não é difícil de perceber a mão do diretor atuando por trás da produção, apesar de se tratar de um filme de estúdio. Outra sequência, também belíssima, é aquela em que Noé conversa com sua esposa Naameh (Jennifer Connelly) e vemos apenas seus perfis negros contra um céu colorido de entardecer. Além dessas, destaco também o relato dos sete dias da criação, em que este fala “no princípio não havia nada” e à partir daí vemos os animais evoluírem em tomadas que parecem animações em quadro a quadro, até a criação dos humanos, seres etéreos e iluminados que viviam no Éden. (Essa é, novamente, uma visão gnóstica, em que somos criados na luz e adquirimos carne e peso material apenas após a expulsão).

Para sua empreitada, Noé conta com o auxílio de gigantes de pedra, que na verdade são os anjos caídos, que não receberam perdão do Criador por querer ajudar os humanos após a expulsão do Éden. Embora cause estranhamento, gigante filhos de anjos caídos e humanas são mencionados na Gênesis da Bíblia. Aqui eles auxiliam no desmatamento da floresta enviada pelo Criador para fornecer madeira à construção da arca e no próprio feitio. Seu visual é bastante interessante, parecendo mover-se, com desconforto, de uma forma que se assemelha ao stop motion de Ray Harryhausen. Aos poucos os animais vão migrando e chegando até o grande barco. Em muita cenas a computação gráfica deixa a desejar e a aparência deles não é crível.

Além de Noé e Naameh, a família é composta por Sem (Douglas Booth), Cam (Logan Lerman) e Jafé (Leo McHugh Carroll), além de Ila (Emma Watson), jovem que encontraram com um ferimento no abdômen quando criança, adotaram e tornou-se companheira de Sem. Em virtude de seu ferimento, acreditava-se que Ila seria estéril. Por sua vez, Cam, mostrava-se preocupado com a falta de uma esposa para ele, o que acarretou graves desentendimentos entre ele e o pai. Antes de começar as cheias, Matusalém abençoa Ila e reverte sua aparente infertilidade. Já durante o dilúvio, quando lhe é relatado o acontecimento, Noé se enfurece, pois passara a acreditar que estava nos planos divinos que a humanidade fosse extinta para que o restante da criação pudesse viver sem perturbação. Assim, seus filhos seriam os últimos homens da terra. Em um momento bastante inspirado na história de Abraão, Noé pega uma faca para matar as crianças que nasceram de Ila. Mas ao contrário da história que inspirou esse momento, este não é um teste de fé ditado pelo próprio Criador: trata-se de um momento de soberba extrema em que, considerando-se o enviado, passa a criar possíveis interpretações para as mensagens que afirma ter recebido em sonho. É o poder do auto-convencimento e o senso de importância se manifestando.

Dessa forma, pode-se dizer que o filme tenha três vilões: a humanidade que destruiu as demais formas de vida e destrói a si mesma em lutas violentas pela sobrevivência; o Criador, que não possui misericórdia e ordena matanças de inocentes por achar que algo deu errado em sua própria criação; e por fim, o escolhido, um homem tão falho quanto aqueles que condenou à morte, à imagem e semelhança de seu Criador.

O filme não se poupa de retratar a “Vergonha de Noé”, trecho do mito que já apareceu em diversas obras de arte ao longo da história e que explica a divisão da humanidade em tribos diversas após o dilúvio.

A Bebedeira de Noé (1508-1812), afresco de Michelangelo
A Bebedeira de Noé (1508-1812), afresco de Michelangelo

Embora tenha sido pungente a forma como Naameh pediu desculpas a Ila ao informar que havia tido duas meninas, não deixa de ser significativo o discurso ao final de que essas duas serão as responsáveis por recomeçar a humanidade. É revigorante ver que a culpabilização das mulheres, tão fortemente marcada na mitologia judaico-cristã, aqui é contrabalançada pela esperança em relação ao futuro colocada em duas inocentes meninas. O arco-íris ao final marca as pazes feitas entre Criador e criaturas.

Um grande erro do filme é, especialmente do meio para o fim, perder-se em certas cenas excessivamente melodramáticas. As cenas de luta corpo a corpo também mostram-se bastante desnecessárias no contexto geral. Mas, fora isso e o fato de ter um CGI nem sempre competente, trata-se de uma narrativa forte e intensa, recheada de belas cenas e atuações competentes. Não está nem perto de ser a maior realização de Aronofsky, mas ainda é uma obra passível de apreciação. Noah-poster

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2 thoughts on “Noé (Noah, 2014)

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