Na década de 1980 o sobrenome Spielberg era sinônimo de inventividade e qualidade. Filmes eram anunciados exaustivamente usando-o como selo de validação, mesmo quando sua função era a de produtor. Até as pessoas que mantinham um interesse apenas superficial por cinema eram atraídas por ele. Por isso parece óbvia a escolha de seu nome para dirigir Jogador Nº 1, filme adaptado do livro homônimo de Ernest Cline e que é largamente inspirado por elementos da década. É uma pena que o conteúdo não esteja à altura da expectativa criada.
A história começa em 2045. Wade (Tye Sheridan) é um adolescente órfão que mora com a tia. A Terra parece estar devastada: a realidade é de tal deterioração que as pessoas passam a maior parte de seu tempo em um universo de MMORPG, onde podem ser quem quiser, criar outra imagem para si e viver vidas melhores. Com a tela preta ao som de Jump, do Van Halen, somos transportados com o clima exato para o mundo que vai nos ser apresentado: Wade, descendo as escadas da favela onde mora, circula em meio às casas empilhadas, de maneira a nos apresentar visualmente às tecnologias em uso por seus moradores. Nesse momento, a narração em off não esconde o esforço de adaptar o texto para a tela. Ele se dirige a um container abandonado, onde, com seu óculos de realidade virtual, se torna Parzival, o cavaleiro solitário em busca do seu Santo Graal. Nesse caso, o prêmio do jogo em que todos interagem é entregue depois da obtenção de três chaves secretas que dariam a quem as coletasse o direito de propriedade de todo o sistema.
Parzival se vê desafiado por uma famosa caçadora de tesouros, Art3mis (Olivia Cooke). Olivia é habilidosa e admirada por isso, mas logo vai firmar uma parceira com ele. Na época do lançamento da animação Uma Aventura Lego (2014), muito se escreveu sobre a Síndrome de Trinity: quando mulheres badass com experiência no que fazem são criadas como um desafio para o personagem principal masculino, novato ou representante do Homem Comum, criando uma espécie de linha de chegada para ele, de forma que no final, ele, sendo “o escolhido”, é capaz de superá-la. É claro que é exatamente isso que ocorre aqui. Mas tem mais: Art3mis, ao ouvir uma declaração apaixonada de Wade, lhe diz que ele sequer sabe quem ela é, que aquele corpo não é seu corpo real e sua imagem é muito diferente, criando a expectativa da possibilidade de uma heroína que fugisse dos padrões. Quando Wade encontra com Samantha, a pessoal real por trás do avatar, trata-se de uma menina magra, branca, ruiva, completamente dentro dos padrões de beleza esperados, apenas com um detalhe: uma marca de nascença cobrindo parte de seu rosto, sobre um olho. Dessa forma, em uma construção de roteiro preguiçosa, o nobre herói pode dizer que está apaixonado para além das aparências e é capaz de aceitá-la como ela é.
Nessa busca pelo prêmio principal do jogo, o Homem Comum desafia a Grande Corporação. A mítica da criação do jogo diz que ele foi feito anos antes por Halliday (Mark Rylance) um nerd solitário, apaixonado por tudo que envolve videogames e cultura popular. Embora ele não soubesse se relacionar com mulheres e tenha tirado seu sócio e melhor amigo da empresa, é apresentado como um bom moço. Em oposição a ele, existe Sorrento (Ben Mendelsohn), um dono de corporação que contrata os melhores jogadores para conseguir a posse das chaves e assim, controlando o jogo, poder finalmente… colocar publicidade nele? Enfim, a separação entre empresa boazinha porque seu responsável está fazendo por amor e a empresa malvada, cujo dono nem gosta de cultura popular de verdade e só quer dinheiro é bastante rasa. Vimos, na vida real, o que essa narrativa Gates X Jobs acarretou e a mudança de discursos refletida em filmes como Piratas da Informática: Piratas do Vale do Silício (1999) e, posteriormente Steve Jobs (2015).
Mas Parzival não está só na sua luta do Homem Comum. Ele tem tem um grupo simpático de amigos que o acompanha, composto por Aech (Lena Waitch), Sho (Philip Zhao) e Saito (Win Morisaki). Além disso, de punhos erguidos e com discurso motivacional, o herói angaria milhares de seguidores para ajudá-lo. Art3mis, que até então era uma jogadora que se destacava, ressalta que ele conhece Halliday como ninguém e por isso só ele pode conseguir vencer o jogo. Dessa forma criando todo um grupo diverso de amigos (ainda que marcados por estereótipos, como o da mulher negra durona e do menino asiático ás no que faz) para que no final, sem nenhum motivo aparente, o garoto branco seja o “especial” e O Escolhido: todos unidos se sacrificando por sua vitória. Dessa, forma, repetindo o erro de outros filmes que homenageiam a década de 80, o roteiro repete tropos da época, sem que haja preocupação em atualizar esse tipo de narrativa.
Há que se dizer que a estética do filme é bastante interessante e ele tem bons momentos de diversão. A criação dos personagens dentro do jogo é visualmente bonita e trabalha bem o excesso de computação gráfica, já que faz parte do contexto de irrealidade do universo criado, compartilhado pelos jogadores. As referências, que vão de um DeLorean a tiranossauro de Jurassic Park, passando pelo Hotel Overlook, funcionam como uma cutucada no espectador, lembrando-o de se empolgar com o que lhe é familiar.
O saudosismo que envolve a década de 80 começou há bem mais de dez anos e perpassa a música, a moda e, claro, a produção audiovisual. É de se questionar se ainda há fôlego para homenagens como a apresentada aqui, pautada em referências e não na complexidade dos personagens criados. Se a construção de universo tem potencial e é interessante, topo o resto se assemelha a uma grande fanfic que mescla elementos diversos da cultura popular. Funcionando como uma mistura de filme com atores de Detona Ralph (2014) com Uma Aventura Lego, Jogador Nº 1 se perde justamente ao não conseguir superar, mas apenas repetir, os erros cometidos em narrativas da década que tenta homenagear.
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