Texto originalmente publicado na coluna Vestindo o Filme em 30/07/2014.
I have crossed oceans of time to find you.
Como figurinos atendem a demandas específicas para a composição dos personagens, demandas estas que se encaixam na visão geral que o diretor tem sobre a obra, raramente um figurinista consegue ser autoral. Eiko Ishioka é uma profissional a quem se pode aplicar esse rótulo: com pouquíssimos filmes em sua filmografia, suas peças são facilmente identificáveis. É nítida sua preferência por cores sólidas, as suas referências, como o barroco e o vestuário tradicional japonês e as formas esculturais bem como o cuidado em relação a detalhes e acessórios complementares.
Drácula de Bram Stoker, dirigido por Francis Ford Copolla, foi uma produção que não contou com vasta verba para locações e criações de cenários. A figurinista atendeu a essa necessidade, além de a de ter um clima de terror dramático, baseado no estranho. Por isso seu trabalho brilhou e foi agraciada com o único Oscar de sua carreira.
Conforme já informado no título, o filme é baseado no livro Drácula, escrito por Bram Stoker. O romance gótico sobre o famoso vampiro é traduzido de uma forma que reflete o temor vitoriano em torno da sexualidade, especialmente a feminina, temática essa que se reflete em outro filme inspirado pela obra e já aqui analisado: Segredos de Sangue.
Sexo, perigo, paixão e sangue: todos esses elementos podem ser identificados pela cor vermelha. Não é à toa que Eiko Ishioka escolheu-a para representar Drácula (Gary Oldman). Ainda em 1562, quando jovem e humano, lutando pelo cristianismo, utiliza uma armadura na cor, com desenho intrigante de feixes que lembram um corpo humano sem a pele, desnudando os músculos.
Após o suicídio, sua amada Elisabeta (Winona Ryder), em contrapartida, traja um vestido verde com bordados em dourado compondo ramos. No peito traz bordado um dragão, animal símbolo da ordem de Dracul, de onde o personagem principal tomou o nome. O traje vai sei ser referenciado outras vezes ao longo do filme.
Já em 1897, quando conhecemos Mina (Winona Ryder), esta usa trajes em tons claros de azul, para realçar sua aura virginal. Em conversas com sua amiga Lucy (Sadie Frost), demonstra ao mesmo tempo interesse e desconforto em relação à ideia da consumação de seu futuro matrimônio com o jovem advogado Jonathan Harker (Keanu Reeves). Além da cor azul, os vestidos de Mina sempre apresentam alguma forma de bordado de galhos ou ramos, conectando-a a Elisabeta.
Já quando Lucy é apresentada, veste-se de branco, como o fazem as noivas de Drácula, que veremos mais à frente. Em certa cena em que as duas amigas conversam no jardim e uma tempestade causada por Drácula está se formando, o vestido de Lucy é confeccionado com tecido tão fino que é possível enxergar a estrutura de sua anquinha e vislumbrar que sob ele não utiliza nenhum tipo de anágua. No filme a personagem lida com sua sexualidade forma aberta, brincando com seus três pretendentes.
Estes, aliás, embora não sejam personagens particularmente desenvolvidos, são suficientemente diferenciados através do seu vestir: o nobre que se veste com uma elegância tradicional e afetada; o médico, com a forma de vestir discreta da pequena burguesia; e o americano novo rico, exagerado e bufão.
Em suas terras na Transilvânia, envelhecido, Drácula se veste com uma túnica clara e sobre ela uma capa vermelha, ambas com bordados em dourado. Na capa o padrão que aparece é novamente de dragões. Suas mangas que se estreitam; sua gola, alta e rígida como de um quimono; e sua extensão exagerada conferem-lhe dramaticidade.
Drácula não se aproxima de Mina imediatamente. Primeiramente, em sua forma animalesca, seduz Lucy. Ela sai de seus aposentos já vestida de vermelho. O vampirismo é como uma punição pelo seu comportamento. Quando seu quadro se agrava e fica de cama, sua camisola também é vermelha, ligando-a a Drácula.
Quando ela morre, é enterrada com seu vestido de noiva. O traje exagerado, com gola alta e mangas longas, cobre todo seu corpo e esconde suas formas, não marcando sequer sua cintura. A jovem deveria levar o casamento que nem chegou a acontecer junto consigo para seu túmulo. Nessa lógica da moral vitoriana, o casamento marcaria a relação sexual permitida dentro de normas de comportamento, bem como o controle sobre o corpo feminino.
As noivas de Drácula vestem-se de branco e dourado de uma forma que remete a trajes gregos da antiguidade.
A formas também recebem inspiração da moda europeia das décadas de 1910 e 1920, quando o continente foi invadido por influências do assim chamado Oriente. Os trajes de então receberam cortes, elementos de adorno e bordados para lembrar de elementos das culturas chinesa, japonesa, indiana e mesmo do da antiguidade egípcia.
Mina troca o azul claro pelo verde quando é avistada por Drácula pela primeira vez nas ruas de Londres. Bordados de ramos adornam o traje, mas dessa vez de forma mais perceptível, em tom contrastante, ligando-a a Elisabeta e captando a atenção de Drácula irremediavelmente.
Quando ambos bebem absinto juntos, ela aparece com os cabelos soltos pela primeira vez, como um sinal de que está liberta da repressão que a envolvia até então. Também utiliza um vestido em vermelho vibrante, deixando claro sua inclinação em relação a ele. Drácula, por sua vez, veste uma casaca com ramos dourados bordados de maneira que há uma troca recíproca de elementos visuais que marcam o interesse amoroso.
Mina retrocede e volta a vestir azul claro quando recebe uma carta de Jonathan relatando que está vivo. Mais que isso, não é qualquer vestido azul claro: é o mesmo de quando havia se despedido dele, de forma que a sua relação é retomada daquele momento.
Ela se casa de cinza e passa então a adotar essa cor em seus trajes. Toda a efusividade de sentimentos que compartilhava com Drácula inexiste em seu casamento com Jonathan. Este, inclusive, jamais é mostrado tendo com ela o mesmo tipo de experiência arrebatadora que compartilhou com as noivas de Drácula. Não há nenhum lampejo de desejo entre os dois.
Quando foge para o lado de Drácula, Mina veste um traje em verde, demonstrando que é definitivamente sua amada.
Já ele traja uma túnica dourada que parece ter como inspiração os quadros de Gustav Klimt e os mosaicos bizantinos (estes últimos de forma bastante adequada tendo em vista que ele havia lutado na queda de Constantinopla).
Drácula de Bram Stoker funciona um conto de advertência sobre a sexualidade feminina, carregado de espírito gótico vitoriano e de grotesco, cheio de vitalidade e belíssimo em sua forma. Obtido com o talento de seus realizadores mesmo em meio à falta de recursos, o visual do filme é talvez sua maior qualidade. A narrativa é marcada pelas cores e elementos que se repetem, sem que isso jamais seja feito de forma simplista. Mais que uma figurinista, Eiko Ishioka era uma artista que esculpia trajes que contavam histórias e intrigavam o observador.
análise muito interessante de um aspecto que as vezes pode passar despercebido para alguns, mas que geralmente é muito importante, como no caso deste filme. ótima escolha de fotos!
Obrigada, Bruno!
Parabéns pela análise!