A música da abertura do filme dita o tom da história: “this is a men’s world” brada a versão da melodia de James Brown. É o final na década de 1970, em Hell’s Kitchen, na cidade de Nova York. Nesse mundo dos homens, três mafiosos são presos em uma ação do FBI, deixando suas esposas Kathy (Melissa McCarthy), Ruby (Tiffany Haddish) e Claire (Elisabeth Moss) sem um resguardo financeiro. A primeira é a esposa amorosa e mãe de dois filhos; a segunda, vítima de violência doméstica; e terceira precisa lidar cotidianamente com o racismo da família de seu marido branco. A máfia a que pertenciam prometeu cuidar delas mas o dinheiro recebido não é o suficiente sequer para pagar o aluguel. Então elas resolvem assumir os negócios locais. A trama é adaptada de uma minissérie de quadrinhos de mesmo nome, escrita por Ollie Masters e Ming Doyle. O roteiro e direção são de Andrea Berloff.
Os citados “negócios locais” nada mais são do que a prestação de serviços milicianos: proprietários de pequenos estabelecimentos comerciais pagam um valor semanal para ter seus negócios assegurados e a garantia de tranquilidade nas ruas (entenda como quiser). Kathy, bem relacionada entre as famílias irlandesas que predominam no bairro, usa as conexões previamente estabelecidas para, garantindo a confiança dos demais, passar para elas essas atividades que antes era dominada pela máfia. É curioso como o filme conecta o crime à própria noção de parentesco e a organização criminosa a uma administração doméstica ou familiar, de maneira a fazer sentido uma assim chamada “mãe de família” gerenciar os indivíduos, suas relações e ações ali implicadas.
O carisma das três ótimas atrizes e o desejo de ver suas personagens, que agem com inteligência e planejamento estratégico, cria bons momentos. Infelizmente eles são rodeados por outros em que quem assiste ao filme se vê questionando qual exatamente é sua proposta. A ideia é que, como e um filme de assalto, as três tenham, cada uma, uma função de acordo com suas habilidades. A princípio isso funciona, mas depois de um tempo vem a realidade: elas não encarnam um protagonismo anti-sistema que geralmente é adotada em filmes do sub-gênero, em que as vítimas são grandes bancos ou cassinos, o poderio financeiro ou político. Isso seria essencial para gerar a conexão entre o espectador e elas mesmas. Nesse caso, as vítimas são seus vizinhos, parte do ecossistema do bairro, que, uma vez não concordando com as práticas oferecidas, sofrem retaliações. Elas não são contra o sistema, são a favor de um sistema paralelo em que o poder lhes é garantido pela violência. Elas são a milícia.
Nesse ponto é preciso destacar que o tom incerto do filme é grande responsável pelo estranhamento. Ele poderia assumir as protagonistas como mais que anti-heroínas, como vilãs na trama. Seria instigante ver um filme protagonizado por mulheres terríveis, que não tentasse criar simpatia por elas e pelas barbaridades que cometem. Mas não é o que acontece, criando uma confusa narrativa em que devemos admirar a afabilidade, especialmente de Kathy, apesar de tudo e suas ações são justificadas por ela mesma não como uma escolha, mas como determinismo geográfico: sou assim porque cresci nesse bairro. O filme não se assume como um suspense de ação, mas falha em criar momentos cômicos, muitas vezes desconfortáveis. Claire, por exemplo, é a personagem que, após apanhar tantas vezes, passa a revidar assédios com uma arma apontada, a matar e esquartejar. Embora seja ótimo voltar a ver Elisabeth Moss em boa forma (após as duas últimas sofridas temporadas de The Handmaid’s Tale), o interesse da sua personagem por métodos de corte é mostrado em um fracassado tom de humor que é reforçado pelo olhar quase desconectado que a atriz imprime sobre suas vítimas. Já Ruby, que é usada reiteradamente para demonstrar o racismo casual daquela época e local, tem sua trajetória munida de um discurso pautado em questões étnico-raciais que nunca são aprofundadas e, ao final, que torna questionável o conhecimento da roteirista sobre tais temas.
No final, os discursos truncados, as motivações mal resolvidas e a indecisão sobre qual gênero o filme deveria se encaixar tornam a experiência de assisti-lo exaustiva. Nessas horas é difícil não pensar em As Viúvas, filme com temática similar de Steve McQueen, cujo roteiro escrito por Gillian Flynn é capaz, conforme escrevi na época, de criar “mulheres protagonistas diversas, questionáveis, multifacetadas e nada simples”.
Isso não significa dizer que não tenha seus bons momentos. A curiosidade inicial leva a querer saber sempre o que virá em seguida, esperando que ele leva a algum lugar inesperado. O trio de atrizes faz o que é possível com o material que receberam. Por fim, os figurinos estão impecáveis: calças bem cortadas, camisas com gravata em laço, estilos bem marcados para cada uma e um retrato interessante da ascensão de cada uma, dentro do contexto da moda da época.
Quando o filme termina fica a sensação que, embora ele seja centrado em mulheres e autorado por uma mulher, ele é fruto da inabilidade da indústria em lidar com as discussões recentes a respeito de gênero em Hollywood. Aparentemente o mero protagonismo de mulheres em um gênero de filmes geralmente dominado pela presença masculina deveria bastar ao público que reivindica narrativas não hegemônicas, mas será que com isso devemos comemorar nossas mocinhas matando moradores de rua em um tom cartunesco que não se define como drama ou comédia? É o feminismo liberal de mercado em grande forma: you go, girl, representatividade na máfia. É “all Gloria Steinem and shit”, como disse uma personagem sobre a postura das protagonistas, resumindo a profundidade da abordagem supostamente feminista. Com um roteiro confuso e um tom que não se acerta, Rainhas do Crime é uma grande oportunidade perdida ao desperdiçar um ótimo elenco em uma história que não define em qual direção quer mirar.
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