Texto originalmente publicado na coluna Vestindo o Filme.
Wuxia é um gênero da ficção chinesa que engloba histórias de cavaleiros ou heróis praticantes de artes marciais em um período passado. No cinema, era conhecido por filmes com baixo custo de produção, até que O Tigre e o Dragão chegou ao mercado ocidental, em 2000, abrindo as portas para filmes posteriores. Herói, de 2002, foi lançado no Brasil apenas em 2005 e é outro exemplo do gênero. A direção é de Yimou Zhang e a trama faz uso do Efeito Rashomon, que, conforme comentado no Podcast Cinema em Cena #139: Grandes Filmes: Rashomon, consiste no uso de várias versões de narrativas que se contradizem para uma mesma história, como no clássico filme de Kurosawa. O diferencial, nesse caso, foi o uso marcado de cor para ressaltar cada uma das versões, tanto no figurino de Emi Wada quanto nos demais elementos presentes em cena.
Há mais de dois mil anos, em uma China dividida em sete províncias, o herói Sem Nome é recebido pelo Imperador da província de Qin (Daoming Chen), uma vez que afirma ter matado três famosos assassinos pelos quais recompensas foram oferecidas. O monarca é marcado pelo preto, que é não só a cor que usa em suas vestes, como a que aparece no uniforme de seu exército e mesmo seus cavalos.
Essa cor também vai predominar no flashback que mostra Nameless (“Sem Nome”, interpretado por Jet Li) derrotando Sky (“Céu”). Até mesmo os figurantes se vestem de cinza, o que ajuda a destacar o ocre da roupa de Sky.
Quando Nameless começa a narrativa a respeito de como conseguiu derrotar Flying Snow (“Neve Que Voa”, interpretada por Maggie Cheung) e Broken Sword (“Espada Quebrada”, interpretado por Tony Chiu Wai Leung), a cor predominante passa a ser o vermelho. A sua história diz que Flying Snow foi amante de Sky em algum momento passado e Broken Sword, ao descobrir, se envolve com Moon (“Lua”), sua ajudante. Enciumada, a própria Flying Snow o mata e, confrontada por Moon, acaba por assassiná-la também. Emocionalmente abalada e desestabilizada, é facilmente derrotada por ele em um duelo. Repleta de trajes vermelhos e detalhes em tons próximos de laranjas e amarelos, além de uma iluminação quente, é um relato de passionalidade e mentira.
O Imperador rapidamente o desmente, afirmando que guerreiros tão bem treinados jamais seriam derrotados dessa maneira tola. Por isso, ele apresenta a sua versão dos fatos, em que ao invés de traição, o que se tem é companheirismo e dedicação a uma causa. As roupas e cenários agora são azuis, e a luz passa a ser fria.
Nameless reconhece que parte da versão do Imperador está correta, mas o corrige em alguns detalhes importantes. Recomeça seu relato, mostrando onde estavam os erros. A verdade vem vestida de branco e agora paisagens e cenários assumem cores naturais, não mais marcadas por tintas carregadas de versões fantasiosas.
Dentro dessa sessão da trama, há um breve flashback que conta quando, três anos antes, Broken Sword encontrou com o Imperador. Nesse caso a cor utilizada é o verde, que vai marcar memórias passadas.
A história verdadeira é contada até o final, mas dessa vez manchada com o amarelo da bandeira que indica um plano que falhou. A verdade ainda é branca, mas agora filtrada por tons quentes.
Herói é um belo experimento narrativo, em que a cor possui papel essencial na construção de versões de uma mesma história. É um filme esteticamente marcante, grande parte em virtude do trabalho da figurinista Emi Wada, que dialoga com o restante da direção de arte de maneira a marcar motivos e criar sensações a eles relacionados.