Estreia na direção da atriz holandesa Halina Reijn, Instinto conta com argumento dela mesma e roteiro de Esther Gerritsen. A trama aborda a psicóloga Nicoline (Carice van Houten), que recém começou a trabalhar em um hospital que trata da saúde mental de criminosos. Experiente no ramo, ela é apresentada como uma pessoa que treina outras para esse tipo de atividade, mas não tem intenção de se fixar em um emprego específico. O caso para o qual foi alocada é do agressor sexual em série Idris (Marwan Kenzari), que está prestes a receber autorização para passear sem acompanhamento devido ao seu bom comportamento e colaboração com o tratamento.
A construção de Nicoline como personagem flerta com estereótipo: logo percebemos que sua casa é um caos e não tem elementos de decoração que marquem sua personalidade, toda em tons de cinza. Ela não se importa com seu próprio bem estar e pode comer pão com sucrilhos ou um balde de frango frito. Se maquia em um espelho fragmentado, que reflete um pouco da sua personalidade, composto por diversos hexágonos posicionados em forma de colmeia. Esses elementos são usados para indicar uma pessoa traumatizada.
Embora nunca seja explicitado na trama, fica claro que o problema da personagem tem relação com sua mãe (Betty Schuuman). Quando somos apresentadas a ela, que deve ter entrado sorrateiramente no apartamento de Nicoline, a segunda está tomando banho e uma câmera subjetiva substitui o olhar da primeira, que passeia pelas costas nuas da filha. Há sempre um senso de excesso de proximidade e contato entre as duas, que faz com que Nicoline se retraia em claro sinal de desconforto.
Nicoline, então, é retratada como uma mulher que veste suéteres e cárdigãs largos e prende o cabelo em relaxados rabos de cavalo ou coques, como se não se importasse com a forma como os outros a vêm. Isso muda quando ela tenta flertar com o colega de trabalho Alex (Pieter Embrechts) e usa um vestido bem cortado e passa batom. O envolvimento com Alex nunca é completo: ela foge da intimidade e não deseja olhar nos olhos durante o sexo. Mais uma vez o filme usa do estereótipo cansativa de que uma mulher que busca sexo pelo sexo precisa ter passado por alguma situação traumática.
Isso é exacerbado no fascínio de Nicoline por Idris. Em casa ela deixa a TV ligada para ouvir documentários sobre animais predadores na selva, e isso é usado para demonstrar seu fascínio por esse tipo de comportamento dominante. Ela não confia nele e sabe que está mentindo nas sessões de tratamento, ao mesmo tempo em que se atrai. Em determinada cena, ela confunde um grupo de rapazes brincando com uma amiga na rua com uma situação de assédio, como se isso indicasse que esses limites não são claros para ela. A fascinação culmina em uma marcada mudança de figurino: ela, que só usava roupas largas, vai ao trabalho com calça jeans clara de corte rente ao corpo e camiseta branca justa. Essa é a exatamente a combinação de roupas que ele sempre usa, ou seja, ela emula a aparência dele.
O jogo erótico de perseguição que se estabelece é extremamente incômodo, especialmente se tomarmos a perversidade do título, que transforma uma série de construções sociais sobre o que entendemos sobre sexo, sexualidade, violência e gênero como uma mera manifestação intuitiva da biologia. Se por um lado o suspense é bem trabalhado, por outro a psicologia rasa usada na definição da personagem e de seus traumas torna difícil receber com seriedade qualquer discussão sobre desejo e erotismo que pudesse se estabelecer na trama. Ela chega, mesmo, a colocar a cabeça no colo de Idris, da mesma forma que faz com sua mãe implicitamente abusadora. Idris, por sua vez, questiona se ela acha que outros homens tem fantasias diferentes das dela e em momento algum se estabelece que o que ele tem não são fantasias, já que as coloca em prática; e que há diferença entre a violência consentida e os estupros por ele praticados. Tudo é colocado em uma mesma escala, usando a confusão de Nicoline com esses limites como argumento. A gota da água é representação de um estupro em que a câmera está sempre em seu rosto e, aí sim, ela olha o homem nos olhos, finalmente estabelecendo uma conexão que não atingia com o sexo consensual.
Em um breve momento ao final do filme, Nicole olha para a câmera, quebrando a quarta parede, para em seguida desviar o olhar. É como se compartilhasse conosco o peso de todas as decisões tomadas anteriormente, mostrando sua força. Tarde demais, pois as escolhas narrativas minam esse instante final de autonomia da personagem. Instinto não deixa de ser um primeiro trabalho de direção provocador. Apesar disso, parece que Halina Reijn de alguma forma se inspirou em Verhoeven, mas por mais interessante que seja sua construção de atmosfera, assim como ele, não soube lidar com a profundidade dos temas que pretendeu abordar.
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