Como muitas avós já diziam, de boas intensões o inferno está cheio. It, nova adaptação do romance homônimo de Stephen King, é um bom exemplo do ditado popular. Inegavelmente bem realizado, dirigido por Andy Muschietti (de Mama) e com roteiro, entre outros, de Cary Fukunaga, o filme se desenrola com elegância, mas não consegue traduzir seu conteúdo para o século XX nem dar peso aos sustos que prepara.
A história, que no livro ocorre na década de 1950, foi transferida para 1988, na cidade de Derry, como sempre no Maine, estado natal do escritor. O local é habitado por adultos apáticos, que, ao invés de lidarem com a dor, parecem querer esquecer os desaparecimentos de crianças que tem ocorrido. Os pais, especificamente, se materializam como figuras de autoridade prontas para oprimir. É o que fazem os de Bill (Jaeden Lieberher), que, ao contrário, se atormenta pelo fato de seu irmãozinho menor ter sumido enquanto brincava na chuva com um barquinho de papel que ele fez.
Bill faz parte do autointitulado “Clube dos Perdedores”, um simpático grupo de outsiders que engloba arquétipos típicos desse tipo de representação, passando pelo menino hipocondríaco, o cdf gordinho, o judeu, o negro e outros. Todos estão acostumados a conviver com valentões que os perseguem, manifestando masculinidade tóxica, que posteriormente é justificada na própria violência dos adultos. E embora sua composição seja arquetípica, a caracterização dos personagens lhes conferem estofo o suficiente para torná-los verossímeis para além dos estereótipos, resultando em interações críveis, incluindo os palavrões e piadas típicos dos treze anos que têm e tantas vezes omitidos em outras obras. Além dos garotos, há uma menina no grupo, Bev, interpretada por Sophia Lillis, uma impressionante cópia mirim de Amy Adams. O motivo que a torna excluída na escola é a fofoca que corre a respeito dos meninos com que já ficou.
O saudosismo retrô que alimenta a obra cria uma visão de anos 80 em que as crianças são independentes e o tempo inteiro desbravam a cidade sozinhas, sem interferência dos seus responsáveis. E se o seriado Stranger Things bebeu da fonte de It, o telefilme de 1990, o filme parece se retroalimentar dele, utilizando a mesma estratégia de misturar referências para um público que tem contato com outras obras e mesmo compartilhando um ator em comum.
Em se tratando de medo, deve-se destacar o trabalho físico de Bill Skarsgård, que encarna o vilão chamado de It. Com ótimas expressões faciais estranhas e sinistras, aliadas à maquiagem, ele se torna uma presença marcante no filme. Mas, infelizmente, não é suficiente para garantir o clima de terror. A premissa da história é que It aparece para cada um como aquilo que essa pessoa mais teme, afetando com o medo e capturando suas vítimas. Pensar sobre o que mais afeta subjetivamente um indivíduo poderia render um terror psicológico denso, daqueles que rastejam por debaixo da pele do espectador arrancando arrepios. Mas Andy Muschietti parece tão preocupado com a estética do filme, que esqueceu de focar no medo que o fincaria no gênero de terror. O que sobra é uma sequência de sustinhos inócuos, que não sustentam a atmosfera a longo prazo e cansam, assim como o uso excessivo de planos inclinados, que depois de um tempo não mais destacam momentos de desconforto, tonando-se uma decisão estética vazia.
Mas o que realmente incomoda no filme é o tratamento conferido à Bev, dentre todas as crianças. A todas elas são oferecidas características que as diferenciam e medos diversos que as aterrorizam. Bev é a Smurfette do grupo e, com o tratamento preguiçoso que recebem personagens caracterizadas dessa forma, o que a define é especificamente o fato de ser mulher. Nenhum dos garotos é definido somente por ser garoto: todos eles são elaborados com personalidades e traços particulares. (Talvez pode-se dizer que Mike sofra por ser negro e sentir o racismo e a xenofobia de ser recém chegado a uma cidade em que o restante da população é branca, mas mesmo seu maior medo não tem relação direta com o fato).
Mas Bev é marcada pelas violências de cunho sexual que a atinge. Não lhe é permitido ter medos variados e pueris como as demais crianças: seu medo parte do terror perpetrado por quem deveria cuidar dela. E por isso, quando It se manifesta para ela, o faz de forma muito mais violenta e agressiva do que com as demais. Se um ou outro vêm-no na forma de um quadro cubista com um retrato de feições distorcidas ou um leproso, para Bev é um jorro de sangue que cobre todo seu rosto, paredes, chão e teto do banheiro, uma vez que com a menstruação que chegou “deixou de ser uma garotinha”. Além disso é atacada por tentáculos de cabelo, o mesmo que cortou porque de cabelo curto parece mais com um menino. Ao contrário das demais crianças, o medo de Bev vem de dentro, não de fora. Ela é punida e definida na trama em virtude de sua genitália. E mesmo se mostrando uma personagem destemida, é ela quem, afinal, funciona como a donzela em perigo. São clichês de construção de personagem que poderiam ser facilmente resolvidos. O filme não precisa funcionar como se tivesse sido feito nos anos 80 apenas porque se passa na época.
Com uma boa fotografia, um elenco carismático, uma boa atuação por parte do vilão e uma trama envolvente, It: A Coisa peca ao não atualizar seu terror e seu roteiro para os dias de hoje, entregando um tratamento indesculpavelmente misógino e preguiçoso de uma das protagonistas e falhando em criar uma atmosfera de medo, que se perde em sustos inócuos, de curta duração.
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