Mitos
eurídice
que foi ao inferno
morreu por amor
e morreu duas vezes
(quantas vezes uma pessoa
pode morrer?
quantas vezes
na mesma vida?)
as cenas
perdidas do passado
mitologia pessoal
da época que foi inverno
(aqui dentro)
o espelho nada diz
se quebra e foge
diante do espectador
cacos
Em sua filmografia, a cineasta francesa Céline Sciamma é afeita às questões de gênero, de performatividade, de corpo e de sexualidade. Nesse, que é seu primeiro drama histórico, não foge desses temas, explorando-os, mais uma vez, em um recorte de grande intimidade. Héloïse (Adèle Haenel) é uma jovem que será oferecida em casamento para um nobre italiano. Sua irmã mais velha, que morreu em circunstâncias que não se sabe se foi acidente ou suicídio, era a noiva original. Para que o casamento se concretize, é necessário enviar um retrato dela a ele e para isso a Condessa (Valeria Golino), sua mãe, contrata uma jovem, Marianne (Noémie Merlant), que, embora seja pintora, finge ser uma dama de companhia.
Esse processo faz com Marianne precise capturar cada detalhe de Héloïse enquanto a observa em suas conversas, para depois, durante a noite, tentar pintá-la de memória. A tela em branco é inquietante. É o marco de alguém que não conhece a sua própria retratada. O carvão desliza inseguro marcando os traços. Na beira da praia, com os rostos cobertos por véus para protegê-los do vento que açoita, as verdades se escondem. Chama atenção o diálogo trocado na beira do abismo onde a irmã havia sido encontrada. “Venho sonhado com isso há anos”. “Morrer?”. “Correr”. Assim se apresentam as parcas possibilidades de liberdade para uma mulher daquela classe social naquele momento: os poucos momentos em que o corpo está solto. Ao ar livre foge-se das regras e a paisagem inóspita torna-se acolhedora. Ainda assim o corpo livre não se permite deixar escapar um grito. A contenção é subentendida, uma vez que o filme pouco apresenta da sociedade que está fora das propriedade da Condessa. A geografia se resume ao castelo decadente, onde o desenho de som destaca o tempo todo os sons dos passos na madeira que range, como em um palco.
(eu ri e disse
que fui ao inferno)
fotos
fotos
fotos
fatos
congelados
trocados
nos painéis
quão fácil
difícil
é guardar lembranças
e substituí-las por outras
porque é necessário
ver
para lembrar
zeus com a cabeça
partida
e um sorriso
sórdido nos lábios
atena nasceu
(algo sempre se quebra
no surgimento)
eu renasci
(renasço de cada caco)
mas… atena?
perséfone
como outrora
lânguida
estirada no meio termo
a vida e a morte
a ambiguidade de ser
O corpo de Marianne não é preso da mesma forma. Ela nada, ela circula pelos espaços. Ela seca-se nua em frente à lareira fumando seu cachimbo entre as duas telas ainda vazias que trouxe consigo. Novamente a inquietação do vazio a ser preenchido. (Mas ela não pode pintar homens, embora eles possam pintar mulheres). Os detalhes que ela capta de Héloïse são registrados com a câmera próxima de seus rostos, compartilhando-os conosco. O momento de virada vem na descoberta de que Marianne é uma pintora. Héloïse pede para ver o quadro e não se vê na imagem que encontra ali. “Não sabia que você era crítica de arte”. “Não sabia que você era pintora”. O diálogos revelam o desconhecimento e como retratar aquilo que não se conhece? O resultado não reflete a verdade nem de uma nem de outra. Uma vela se aproxima do quadro e o coração está em chamas.
Na ausência da Condessa, a relação entre as duas jovens é mediada pela presença de Sophie (Luàna Bajrami), a jovem criada que compartilha com elas de conversas e momentos de intimidade, incluindo sua suspeita de gravidez, que leva todas a participarem de ritos de união com as mulheres da aldeia. Um olhar procura pelo outro e o vestido está em chamas.
As três meninas dividem a leitura da história de Eurídice, que após morrer foi resgatada por seu amado Orfeu do mundo inferior. Hades permitiu que ela voltasse à superfície com uma condição: que seguisse Orfeu e que ele não olhasse para trás, senão morreria novamente. Orfeu, claro (pois senão não haveria tragédia) virou-se para checar se Eurídice ainda o seguia e, assim, após um breve vislumbre, a perdeu para sempre. Héloïse defende que não foi descuido, foi uma escolha poética e não romântica de guardar a memória de Eurídice.
(eu ri e disse
que sou o inferno)
acariciando
as cabeças de cérbero
nada há a temer
ri-se do medo
tudo é possível
ri-se da vida
ri-se da morte
Isabel Wittmann (06/12/2003)
O filme inteiro evolve na ideia dessa Eurídice mítica. Vire-se. Registre o momento. A intimidade compartilhada, a saliva, as axilas, os lábios que se buscam. A diferença entre o retrato no quadro, posado, austero, e o esboço feito com Héloïse dormindo, tão próximo. As mãos que se soltam na praia. O lenço que descobre a boca. A página 28 no livro. O espelho que esconde a vulva. Elas como espelho uma da outra: olhar inevitavelmente é ser olhada.
O contraste entre as duas é marcado na roupa. O verde de Héloïse é a cor complementar ao vermelho-vinho de Marianne. A primeira usa cetim, tecido caro, enquanto a segunda usa algodão rústico. Ainda assim, é a segunda que pode viajar sozinha e até mesmo já foi pra Itália, futuro lar da primeira. Significativo é que quando Marianne revê Hèloïse no futuro as duas vestem marrom, cor que é criada da mistura entre as tintas verde e vermelha.
A intensidade da construção do relacionamento entre as duas realizada por Sciamma é uma para a qual faltam palavras para descrever. (Essa é a vantagem da pintora: quando faltam palavras, sobram traços). Héloïse se descobre em Marianne. Ambas compartilham de poucos dias na sua juventude que marcarão suas vidas. Pintar o retrato é, sim, olhar e ser olhada, mas mais que isso, é conhecer e ser conhecida, como mais ninguém. A arte funciona como um processo único de comunhão mútua. Vire-se. Existe a lembrança que fica e o que poderia ter sido. (Mas nesse caso não poderia, por todo o contexto histórico-social). O filme de Sciamma arde no sentimento e na beleza de suas cenas. Vire-se e fica a memória da página 28.
Lindo filme, provavelmente o melhor em décadas.