(aliteração não intencional no título, mas vou deixar assim mesmo)
Esses dias caiu nas minhas mãos o livro Corpo e Alma- Notas etnográficas de um aprendiz de boxe, escrito pelo sociólogo francês Loïc Wacquant. A etnografia, bastante interessante, trata do trabalho de campo do autor, que se mudou em 1988 para trabalhar na universidade de Chicago e foi morar na divisa do que chama de “gueto” da cidade, uma bairro pobre e de população majoritariamente negra. Sua ideia original era pesquisar questões raciais no local, mas, como frequentou entre esse ano e o de 1991 a academia de boxe comandada pelo treinador DeeDee, acabou mudando seu tema para a prática do esporte. E claro que questões étnico-raciais e econômicas aparecem constantemente na obra, afinal o ele era o único homem branco que treinava no local e o bairro era afetado pelas consequências da baixa renda de seus moradores. Para se ter noção, ao preencher a inscrição, a maior faixa de renda disponível para assinalar era menos que a metade da renda média do município. A prática do esporte é intrinsecamente ligada à situação financeira de seus praticantes e por isso explica que, cronologicamente, os grupos que predominaram no esporte foram os irlandeses, seguidos por judeus do leste europeu, italianos, afro-americanos e, por fim, os latinos. Todos esses foram grupo historicamente excluídos no contexto da sociedade americana.
Para Wacquant, a academia funciona numa relação de oposição com as ruas. Muitos jovens que chegam para treinar o fazem porque são bons de briga nos espaços públicas, mas ali precisam aprender a lidar com regras bastante específicas de treinamento e condicionamento, que os afastam do que é tratado como violência desregrada, além de proporcionar uma perspectiva de carreira. O treino é longo, praticamente diário e muito repetitivo. Mas as aulas nunca envolvem ensinamentos, livros, vídeos de análise de outros lutadores ou outras tecnologias: o aprendizado ocorre como que por imitação. Quando a academia está lotada, cada um se espelha no movimentos dos companheiros mais avançados, até que os movimentos se tornem intuitivos, como uma extensão do corpo do aprendiz.
O corpo, nesse contexto, é entendido como um capital finito: um aprendiz leva de dois a três anos para se tornar boxeador amador e então mais três anos pra se tornar lutador profissional. Embora esse seja o objetivo da maioria, nem todos sabem administrar esse recurso e o desperdiçam em treinos excessivamente pesados ou lutas desnecessárias, de maneira que quando finalmente alcançam a patamar da profissionalização, já estão desgastados e “acabados”, nas palavras de DeeDee.
O rigor controlado que envolve os treinos é um dos motivos pelos quais o autor refuta a teoria do “boxeador faminto”, aquele que vem de uma situação financeira desprivilegiada e luta com garra para melhorar de vida. Segundo ele, o que se vê é que embora o bairro seja pobre, quem realmente consegue manter uma boa rotina de treino com a regularidade necessária para a profissionalização são aqueles que tem as finanças mais estáveis dentre eles. Isso porque só assim conseguem vir todos os dias à academia, sem precisar procurar bicos ou jornadas duplas, além de manter uma boa alimentação, também necessária.
O próprio Wacquant, ao término de três anos de treino, participou de um torneio amador de boxe e o último capítulo do livro se dedica a relatar a sua experiência. É interessante pensar que o trabalho de campo dele consistiu em mais do que observação participante: ele precisou experienciar os treinos, sentir nos seus músculos, entender as posturas, lidar com olhos roxos, enfim, treinar o seu corpo, interligando, assim, a prática com a racionalização teórica sobre ela.
O pesquisador recomenda o filme Cidade das Ilusões (Fat City, 1972), dirigido por John Huston, como sendo um que realmente capta o clima de uma academia e o transfere para a tela. O filme narra a trajetória de dois boxeadores em momentos distintos de suas carreiras e realmente é possível nele visualizar o tipo de ritual relatado no livro: o sparring (luta de treino), os sacos de pancada, as sequências monótonas de exercícios, o chegar ou não ao objetivo por detalhes, estão todos lá. Mas também não deixo de lembrar do recente Chi-Raq (2015), de Spike Lee, que justamente trata sobre a juventude das áreas pobres e negras de Chicago e a violência nas ruas.
Nos escritos de Loïc Wacquant o corpo aparece como um instrumento e uma extensão do próprio raciocínio de seus personagens (e dele mesmo) e o esporte como uma prática ritual que o leva á expressão do instinto. A escrita etnográfica é fluida e muito acessível. Ele chega, mesmo, a contar com certo desdém a história de um editor que se ofereceu publicar seu “romance”, acreditando que o trabalho tratava-se disso. Mas embora o texto possa parecer romanceado, nas entrelinhas se aprende muito sobre os temas-chave abordados e mesmo que esses temas não sejam de especial interesse para o leitor (e não o eram para mim), há muito que se aprender com ele.