Lars von Trier é sempre uma figura difícil, com obras interessantes e espinhosas de analisar. Dançando no Escuro é um filme que em certos aspectos se diferencia do restante da filmografia do diretor. Protagonizado pela cantora islandesa Björk, trata-se de um musical. Em 1995 von Trier lançava o manifesto Dogma 95, que escreveu com outros jovens diretores dinamarqueses e que pedia filmes mais naturais, com uso de luz ambiente, som diegéticos, filmados em locação e sem efeitos visuais ou filtros. Essa crueza pretendida não poderia ser mais oposta ao gênero musical, que talvez seja o mais artificial de todos os gêneros cinematográficos. Mas Lars von Trier subverte as expectativas e cria uma película filmada com câmera na mão tremida, cortes secos, iluminação bastante dura e fria, que parece quase zombar dos números musicais, que acontecem como devaneios de sua protagonista. Embora pessoalmente não goste do estilo de canto de Björk, as sequências musicais funcionam muito bem dentro dessa ideia de imaginário.
Selma Jezkova (Björk) é uma reencarnação de Bess, de Ondas do Destino. Comporta-se de forma infantil e jamais reage ao que acontece ao seu redor. A personagem está ficando cega e tem um filho com problemas de visão. Trabalha em longas jornadas em uma fábrica para conseguir dinheiro para pagar por uma cirurgia que reverteria os problemas do filho. Ao contrário de outros filmes do diretor, a questão da sexualidade não é colocada diretamente na trama, mas de forma indireta, já que o filho é consequência de um ato sexual passado. E a respeito dele e de sua doença o que a personagem tem a a dizer é que “esta é minha punição” e “é minha culpa”. Culpa e punição pelo sexo praticado por mulheres perpassa boa parte da filmografia do diretor, sendo um de seus temas mais recorrentes. No caso de Selma, seu filho se chama Gene. Não é por acaso, tendo em vista que seus problemas físicos são genéticos e provém da mãe.
A protagonista é uma migrante tchecoslovaca e escolheu os Estados Unidos por alguns motivos: para conseguir fazer a cirurgia em seu filho e por causa dos filmes musicais que a encantavam no cinema do país de origem. A história se passa na época dos grandes musicais, em torno da década de 1960. A maneira como a trama transcorre desconstrói esse sonho americano e ao mesmo tempo mais uma vez demonstra o erro de ver em um musical um suposto retrato da realidade. Como comenta um personagem em certo momento, as pessoas não começam a cantar e dançar do nada na vida real. Assim, como basear uma ideia de realidade em filmes do gênero?
Selma passa por um calvário de acusações mentirosas e jamais se rebela. Von Trier, como em Ondas do Destino, deixa claro que ela está certa e os demais estão errados, que ela é vítima de um julgamento equivocado. Ainda assim, ele leva a tortura da personagem até o final, tornando-a uma mártir em uma cena que novamente repete a fórmula do outro filme já citado, ao deixar claro que ela está acima de tudo isso e sua existência, enquanto arquétipo, permanecerá. A fascinação do diretor pelo martírio feminino é intrigante. Ele cria mulheres que talvez não possam ser chamadas de fortes, já que não lutam, mas são resistentes, pois aguentam a jornada que lhes é destinada.
Dançando no Escuro é um filme realmente interessante, que se apropria do gênero que explora para escancarar seu escapismo, através de um drama exagerado e impossível. O irônico é que a crueza do produto final, com a estética pretensamente realista ainda com maneirismos do Dogma 95, esconde o fato de que, enquanto obra cinematográfica, também é fantasia e tão desconectado da realidade quanto qualquer filme musical.
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