Estante da Sala

Yentl

Barbra Streisand é uma das 21 pessoas chamadas de EGOT. Isso significa que já foi premiada com Emmy (prêmio de televisão), Grammy (música), Oscar (cinema) e Tony (teatro). Começou a sua carreira na Broadway como cantora e seu primeiro papel no cinema já foi um sucesso absoluto: Funny Girl: A Garota Genial( Funny Girl, 1968), dirigido por William Wyler, que mostra uma comediante no começo do século XX, chamada Fanny, papel que ela já havia interpretado na Broadway. Destaco, ainda, seu papel em Essa Pequena é Uma Parada (What’s Up Doc, 1972), de Peter Bogdanovich, uma comédia maluca com Ryan O’Neil, que envolve malas trocadas e muitas confusões estilo sessão da tarde; e como a protagonista da terceira versão de Nasce Uma Estrela (A Star is Born, 1976), que, embora seja uma versão menos bem sucedida que as demais, se sustenta muito graças ao charme e o talento dela, incluindo o figurino selecionado do seu próprio guarda-roupa.

Na sua carreira de diretora foram somente 3 filmes e em comum, em todos ela, além de dirigir, produziu e atuou. Yentl (1983), foi indicado a 5 Oscars e ganhou o prêmio de Melhor Canção. Também foi indicado a 6 Globos de Ouro e foi premiado como Melhor Filme de Comédia ou Musical e Melhor Direção, para a própria Streisand. Até esse ano ela era a única mulher a ter vencido um Globo de Ouro de Direção (agora se somando a ela Chloé Zhao, por Nomadland).

O Príncipe das Marés (The Prince of Tides, 1991), em que ela interpreta uma psiquiatra que se envolve com um paciente com traumas familiares foi indicado a 7 Oscars e 3 Globo de Ouros, é um filme menos satisfatório. O Espelho Tem Duas Faces (The Mirror has Two Faces, 1996), por sua vez, é uma comédia romântica em que ela é uma professora universitária que começa um relacionamento com um homem que não quer sexo (mas ela quer). Ele foi indicado a 2 Oscars (incluindo um para Lauren Bacall, o único da sua vida), e 4 Globos de Ouro, sendo Bacall premiada como melhor atriz coadjuvante. Trata-se de uma comédia romântica que lida com autoimagem, relação mãe e filha, com a idealização do amor romântico e quebra muitas expectativas. Sendo os anos 90 um novo reinado do subgênero, fica a sensação de que o filme deveria ser mais lembrado.

Mesmo que Barbra Streisand tenha aparecido entre 1969 e 1980 dez vezes na lista de atores que mais rendem bilheteria, todos os estúdios grandes se recusaram a financiar Yentl. Trata-se de um drama-romance-musical adaptado de um conto chamado Yentl, o garoto de Yeshiva, sobre uma jovem do Leste Europeu em 1904, filha de um estudioso, que queria muito também poder estudar as escrituras, mas isso não era permitido às mulheres na época. O pai dela deixava ela ler escondida em casa, mas quando ele morre, ela corta o cabelo e resolve ir para a cidade como um rapazinho, com nome Anshel, em busca do conhecimento e dos estudos. E lá ela conhece o também estudante Avigdor (Mandy Patinkin), e a noiva dele Hadass (Amy Irving).

O filme também se insere numa tradição de histórias de pessoas que se vestem para passar pelo gênero oposto e as confusões que derivam daí. Shakespeare tem várias peças em que mulheres se vestem com roupas entendidas como masculinas para circularem com mais facilidade, por exemplo. Streisand nunca se parece de fato com um rapazinho, mas o cinema no geral e o musical em específico permitem a criação dessa fantasia.

Um dos aspectos mais interessantes do filme é como ele lida com os papéis de gênero, discutindo eles dentro da tradição da Talmud. O pai de Yentl, mesmo sendo um estudioso da dos escritos sagrados, ensina ela sobre os conhecimentos: ele a afirma que Deus entende, mas os vizinhos talvez não. Fica claro que as hierarquias pautadas em gênero no ambiente religioso vêm da interpretação dos textos, feita para a conveniência dos homens. (isso acontece, claro, nas três religiões monoteístas abraâmicas, não apenas no judaísmo). Mulheres não são proibidas de aprender de acordo com as escrituras. Acompanhamos discussões sobre as traduções dos textos e Anshel defende a igualdade das mulheres em relação aos homens, porque Eva teria sido criada do flanco de Adão e, portanto, estaria ao seu lado. Mas essa interpretação se confronta com a realidade das vivências: esposas e filhas cuidando de maridos e pais. A liberdade que Yentl tem como Anshel contrasta com o silêncio da Hadass. Avigdor chega, mesmo, a dizer que não se importa com o que ela pensa, porque ela é mulher, não precisa pensar nada. Fica claro que ela só precisa costurar e fazer bolos de amêndoas. 

Em certo momento, a família da Hadass descobre algo sobre Avigdor que os fazem cancelar o casamento e quem casa com ela é Anshel. A relação entre os dois é muito interessante, porque partindo de sua experiência como mulher, ele trata Hadass como uma pessoa, explica a ela os direitos que as escrituras lhe garantem, conversa com ela, ensina, pergunta sobre suas opiniões opiniões. Ou seja, estabelece uma relação de igualdade, que muda a forma como a própria Hadass se vê como pessoa. É muito bonita a hora em que ela fala que quer que ele se orgulhe dela e ele rebate que espera que ela tenha orgulho dela mesma. O filme tem várias camadas de leitura queer e destaco o humor na cena em que Anshel observa os seios de Hadass quando ela se inclina para servir o chá e aprecia, nesse gesto, os atributos de feminilidade tradicional nos atos dela dela, além de sua beleza. Em seguida ela pergunta “você quer leite ou limão? qual dos dois?”, ficando implícita a necessidade de escolha entre Hadass e Avigdor, entre feminino tradicional e masculino tradicional.

Existe uma negociação constante da autonomia desses corpos e também da sexualidade, não só de Yentl, que tem que esconder todo e qualquer desejo, como até mesmo de Avigdor, que não pode sequer pensar na noiva antes de dormir por ser um pecado. Ao mesmo tempo, os corpos que são entendidos em sua masculinidade podem se libertar e confraternizar nus no rio, o que rende uma cena de grande humor em torno de Yentl/Anshel. Por fim, o filme resolve bem os conflitos gerados pela identidade de Anshel: quando Yentl tem que escolher entre o estudo e o romance com limitações, ela escolhe o estudo e uma mudança de vida que ainda assim poderia permitir o romance, porque não, mas em outras condições de hierarquia.

Sobre o aspecto musical do filme, é claro que Streisand entrega grandes performances. Mas a beleza da proposta musical está no fato de que a música é a subjetividade da personagem e só aparece para Yentl ou Anshel: é o pensamento e a reflexão sobre o que está se passando, como se ela tivesse que conter tanta coisa nessa vida de disfarce, que isso tudo explodisse em música.

Com um orçamento modesto para padrões hollywoodianos (14 milhões de dólares), Yentl é um primeiro trabalho de direção confiante, com uma direção de arte primorosa, movimentos de câmera confiantes, uso de luz, além, claro, de se valer da atuação, canto filme se vale da atuação e canto da própria Barbra Streisand.


Texto adaptado do roteiro da minha fala no podcast Feito por Elas #134 Barbra Streisand

Nota: 4 de 5 estrelas
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1 thought on “Yentl

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