A cidade de Toritama, no agreste pernambucano, tem apenas 40 mil habitantes mas produz cerca de 20% do jeans nacional, o que equivale a 20 milhões de peças por ano. Apelidada de capital do jeans, ela é a locação para o documentário Estou me Guardando para Quando o Carnaval Chegar (2019), dirigido por Marcelo Gomes. Com uma narração em off que dialoga com quem assiste, o diretor retrata com proximidade e não sem espanto alguns aspectos da realidade econômica local.
Segundo ele, décadas antes visitara a cidade junto com seu pai, que trabalhava para o governo. Tanto o pai como a mãe são nascidos na região. O que existia, então, era milho, feijão, bode, pouca gente na rua e um grande silêncio que marca a vida no interior. Hoje o rugir das máquinas de costura toma conta de tudo e o transeunte distraído é saudado com um enorme outdoor fincado no chão seco, que contrasta com as pequenas casas do local. Motos carregadas com pilhas de jeans e carrinhos puxados a mão por seus responsáveis correm pelas ruas poeirentas. Salas e garagens se transformam em pequenas fábricas, chamadas de facções, onde homens e mulheres se enfileiram realizando seus movimentos repetitivos, quase como que num transe. Em um momento oportuno, a voz do narrador-diretor se cala e ele deixa a câmera falar: os bebês ficam ao chão entre as pernas dos adultos e um menino se estica querendo brincar com uma máquina, como se estivesse se preparando, com curiosidade, para sua vida futura.
Toritama é um oásis do que há de pior no capitalismo. Não aquele desfrutado em países do norte global por poucos CEOs: aquele real, vivido na pele da classe trabalhadora nos países em desenvolvimento, marcado pela precarização. As pessoas retratadas aprendem os discursos e estão prontas a repeti-los: aquela vida é ótima, cada um é seu próprio chefe, todos ganham pela própria produção. Mas ninguém ali tem vínculo empregatício, em caso de doença ou mesmo lesão (afinal, é muito esforço repetitivo), não há qualquer garantia. As pessoas se mostram orgulhosas de serem, nas suas palavras, donas do próprio tempo. Mas a realidade é que vizinhos concorrem com vizinhos e a solução é trabalhar 12, 14 horas por dia, 7 dias por semana, para dar conta da demanda, ganhando alguns centavos por peça costurada, sem que, na prática, sobre tempo para si. Idosos, que deveriam estar aproveitando o descanso de uma vida de trabalho, executam suas tarefas nas calçadas em frente às suas casas. O cenário lembra o ideário das oficinas da revolução industrial na época do vapor, mas é vendido como o ápice da liberdade profissional.
A demanda por mais mão-de-obra atrai trabalhadores de outros locais e começa a se formar novos núcleos de habitações precárias no cinturão da cidade, em áreas sem urbanização. Com uma calça jeans pronta sendo vendida a 30 reais nas feiras da cidade, é de se questionar o que acontecerá com esses moradores quando outro lugar conseguir pagar ainda menos a seus trabalhadores para produzir calças a 29 reais, estourando essa bolha.
A vida dedicada, todos os dias, a uma fábrico do qual não se desfruta explode catarticamente na possibilidade de, uma vez ao ano, viajar para a praia para passar o carnaval. Não é um desejo, é uma necessidade, como se a ação fizesse valer o ano inteiro de trabalho. Nesse momento, Gomes divide sua câmera com Leo, um dos interlocutores do documentário, e compartilhamos desse momento de descanso. O Carnaval, aqui, ao contrário do que indicado por Roberto DaMatta, não chega a ser um ritual de rebelião contra a ordem estabelecida: é, antes, uma necessidade que disfarça um pedido de socorro na rotina estafante.
Marcelo Gomes, acostumado aos filmes ficcionais, entrega um documentário intenso, que não julga as pessoas retratadas, mas parece jogar para quem o assiste as reflexões necessárias. Com imagens lindas e um cuidado enorme ao retratar as pessoas, Estou me Guardando é angustiante e revela a perversidade de um sistema de produção que se disfarça de liberdade.
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