Texto originalmente publicado na coluna Vestindo o Filme em 15/02/2014.
A colaboração entre os diretores e roteiristas Michael Powell e Emeric Pressburger, autointitulados Os Arqueiros (The Archers) gerou diversos belos filmes, entre eles um que, sem dúvida, pode ser considerado uma das maiores obras-primas já produzidas: Os Sapatinhos Vermelhos, de 1948. O filme é de uma beleza impressionante e tem um uso de cores primoroso. Todo o seu design de produção é lindíssimo, passando pelos cenários até chegar ao figurino criado por Hein Heckroth. Como muito bem definido por Leonardo Alexander o filme é “uma exaltação do poder da arte”.
Trata-se de uma trágica história de paixão pela dança, obsessão pela arte e de uma bailarina que se torna protagonista de uma peça que retrata sua própria trajetória. (Percebe-se que Cisne Negro bebeu dessa fonte.)
Victoria Page (Moira Shearer) é uma bailarina que ao longo da carreira fez muitos papéis principais, mas nunca em uma grande companhia. A chance aparece quando conhece Boris Lermontov (Anton Walbrook), um diretor rigoroso que parece apostar em seus talentos. Além de Victoria, Lermontov acredita no jovem compositor Julian Craster (Marius Goring), que é convidado a reger a orquestra de sua companhia e compor para ela.
A primeira cena que vemos é grupo de estudantes correndo para conseguir lugar no teatro e assistir a um balé composto por seu professor. Esse grupo de pessoas é uma massa marrom, pontuada de azul e amarelo. Essa cena não só mostra a paixão deles pela arte que assistirão, como nos apresenta à paleta de cores básica do filme: amarelo (saindo do areia, passando pelo mostarda até tons acastanhados) e azul (do mais claro, passando pelos esverdeados e acinzentados até o azul-marinho). Essas cores estarão presentes em cada uma das cenas, em ambos, roupas e cenários e, junto com o vermelho, que terá destaque posteriormente, são as três cores primárias. As duas primeiras ajudam a destacar o terceiro. Raramente se apresentam em suas formas puras: geralmente estão esmaecidas. A composição das cores em cena contam uma história por si só.
Encantada com a peça, Victoria nos é apresentada utilizando um vestido azul-marinho com capa, adornados com renda branca e uma coroa como acessório. É esse traje que utiliza quando Lermontov conversa com ela pela primeira primeira vez, iluminada estrategicamente por um castiçal ao seu lado. Ele, então, a convida para fazer um teste com o objetivo de ingressar em sua companhia.
Após a apresentação, no outro dia, Lermontov recebe suas correspondências em seu escritório. Todo o ambiente segue o padrão de tons amarelo, dos claros aos castanhos. Contrastando com o entorno e tornando-se um ponto focal, ele veste uma espécie de robe azul com bordados dourados. A forma da peça demonstra seu pendor artístico, destacando uma certa teatralidade em suas maneiras, mesmo na intimidade do lar. O posicionamento dos elementos mais fortes em amarelo (os vasos de flores) servem para destacá-lo e emoldurá-lo no ambiente. Quando se senta para tomar café, seu valete reposiciona o melão na mesa, trazendo o destaque novamente para perto dele.
Outro detalhe sobre Lermontov é a insígnia vermelha que utiliza em sua lapela. Esse detalhe, embora pequeno, tem grande importância, pois indica que o personagem foi condecorado com a Légion d’Honneur (Legião de Honra), por trazer glória à nação francesa. O título é bastante valorizado e o posiciona como um grande artista.
Fugindo das cores que todos os demais vestem, temos Irina Boronskaja, a prima ballerina da companhia no começo do filme. Suas roupas sempre serão em preto e branco, quebrados pelo vermelho de seu batom. Irina é despedida por Lermontov após anunciar que vai se casar, pois ele não acredita que a paixão possa ser dividida. Quando Victoria passa a ser a principal bailarina, imediatamente passa, ela mesma, a usar preto e branco, durante um ensaio, ocupando visualmente o papel de Irina.
Mantendo a coerência, a paleta baseada em cores primárias também se faz presente nos trajes dos personagens secundários e figurantes, tanto dentro quanto fora da peça. Geralmente a opção é pelo uso delas em suas versões enfraquecidas, de maneira que o vermelho aparece como rosa.
No dia em que é chamada para um entrevista em que é avisada que será a protagonista da próxima peça, Victoria deixa escapar seu primeiro contato com o vermelho: escondido sob o vestido azul, uma volumosa anágua rosa aparece. O colar e a coroa remetem ao dia em que conheceu Lermontov. Na sala com tons amarelos e cinza-azulados, novamente um vaso de flores, dessa vez rosa, cria um ponto focal entre os dois personagens de azul. A roupa dela, excessivamente formal para um encontro diurno, demonstra sua ansiedade e desejo de agradar seus superiores.
A peça será Os Sapatinhos Vermelhos, baseada no conto de Hans Christian Andersen, que conta a história de uma moça que adquire um par de sapatos vermelhos para ir a um baile e passa a noite toda dançando sem parar. Ao ir para casa, descobre que não consegue parar de dançar e por isso é levada à exaustão. A única forma de livrá-la da maldição é cortando fora seus pés. Mesmo assim, os sapatos seguem dançando. A música será composta por Craster. Na noite em que ambos são delegados aos seus grandes papéis, conversam pela primeira vez de verdade. Os dois vestem roupas listradas em azul, que os aproximam, mas ele com jaqueta amarela e ela em rosa, o vermelho controlado. Em frente ao seu balcão, passa um trem, como um aviso acerca do trágico final da trama.
Quando a peça estreia, o filme a mostra em uma sequência impressionante que dura em torno de quinze minutos. Na infância do cinema, muito de sua linguagem era tomada do teatro: os cenários, a atuação, a composição de planos médios, mostrando tudo que ocorre em cena como ocorreria em uma peça. Em 1948, quando o esse filme foi lançado, o cinema já era maduro o suficiente para explorar suas próprias particularidades. Ao retratar o balé, o filme vai além do que seria possível em uma apresentação convencional e faz o que nenhuma peça jamais poderia fazer, utilizando close no rosto de sua protagonista e mesmo efeitos especiais que ajudam na criação da fantasia. Nesse mundo amarelo e azul, cores também das duas versões do vestido de Victoria usado em palco, finalmente as suas sapatilhas vermelhos se destacam. A arte, através da dança, está no seu ápice.
Quando a sombra do sapateiro recai sobre ela, ele é ao mesmo tempo Lermontov e Craster. Dançar é maldição e é paixão. A bailarina se ergue ao ar como uma flor, um pássaro, uma nuvem: resultado perfeito da visão do compositor sobre a obra. A fantasia e a realidade se fundem, unindo, também, os dois artistas. Com a morte de sua personagem vêm a consagração e o estrelato de Victoria.
Acontece que Victoria e Craster iniciam um romance, fato que desagrada imensamente Lermontov. Os ciúmes dele em relação a Victoria não têm relação com desejo: ele tem ciúmes de seu talento, quer exclusividade sobre sua arte. Afinal, nem a mente nem o coração podem estar na dança quando se está sonhando com amor, como ele mesmo diz. Craster é demitido. Desolados, ambos estão sentados em uma praça, dessa vez ela de azul e ele de amarelo, em trajes praticamente idênticos. Victoria decide falar com Lermontov, para também demitir-se. Utiliza uma roupa azul-marinho com detalhes em branco, espelhando novamente a primeira vez em que ele lhe deu a chance de trabalhar para sua companhia.
Em seu apartamento, refletindo sobre os últimos acontecimentos, Lermontov mais uma vez veste uma roupa extravagante, que parece um figurino exótico. Dessa vez ele passou a usar um gibão de veludo vermelho, com forro interno amarelo, que se liga à cortina de veludo do palco do teatro, com suas franjas douradas. Da mesma forma o ambiente, com paredes azuis e decoração em vermelho e dourado, também remetem ao teatro, que segue o mesmo padrão de cores.
Atormentada e dividida entre o amor e a vontade de dançar, Victoria volta para mais uma apresentação de Os Sapatinhos Vermelhos. Seus pés, como no conto, criam vida própria e passam a ser o foco em cena, quando se ergue uma última vez ao ar.
O uso preciso das cores é extremamente importante na narrativa de Os Sapatinhos Vermelhos. São filmes como esse que despertam saudades do Technicolor. Mas não são apenas as cores, como também música, dança, cenografia, figurino, direção impecável: tudo colabora para a criação de uma obra audiovisual incomparável.
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