Estante da Sala

Rainha de Copas

Anne (Trine Dyrholm) é uma bem sucedida advogada que trabalha em casos de violência contra menores. Casada com um médico, mãe de duas filhas gêmeas e moradora de uma imensa casa com grandes panos de vidro rodeada por um bosque, ela parece ter uma vida perfeita. Mas a chegada de seu enteado, o adolescente Gustav (Gustav Lindh), desestabiliza sua rotina.

Gustav, que enfrenta problemas na escola, aceitou terminar o ano letivo morando com o pai. Mas o que ele traz para a vida de Anne é toda uma nova vivacidade que contrapõe sua rotina. Ela é invisível para seu marido e as interações entre os dois são de um distanciamento que diz muito sobre o ponto em que o relacionamento se encontra. Sentados em lados opostos da mesma cama, de costas um para o outro, há um abismo de incomunicabilidade entre os dois.

Rainha de Copas, dirigido por May El-Toukhy. Foto: Rolf Konow

A constatação da vida sexual de seu enteado parece fazer questionar-se se ela mesma ainda é um ser sexual. Em certa cena admira-se nua diante de um espelho como se perguntando se esse corpo ainda é capaz de ser desejado e tocado. Suas elegantes roupas em tons neutros parecem esconder alguém que ainda quer viver essas sensações. É dessa forma que quebra o protocolo formal em um encontro de amigos e dança como que querendo sentir-se mais viva.

O que se desenrola a partir disso é de uma enorme tensão. O filme estabelece o contexto de julgamento social sobre a vida sexual das mulheres. Uma cliente de Anne, por exemplo, fica embaraçada ao falar que saiu com sete homens antes de ser violentada, como se por isso ela fosse menos digna de respeito. Por outro lado, por mais que não haja um julgamento na forma como os discursos são posicionados na narrativa, o peso dos atos são bem estabelecidos, especialmente ao contruir Gustav como um menino confuso e Anne como uma espécie de figura materna, dando dimensão do abuso que significa as ações dela em relação a ele.

Rainha de Copas, dirigido por May El-Toukhy. Foto: Rolf Konow

Alice no País das Maravilhas, referenciada no título, é o livro que está sendo lido para as filhas de Anne. Algumas vezes, quem faz a leitura é o próprio Gustav, que assume o papel de criança como elas. Ele vive uma complexidade de sentimentos confusos demais para um menino tão novo. Anne, por sua vez, encarna a Rainha de Copas capaz de manipular de maneira cruel para se defender e para defender a boa vida que tem para si. A natureza em torno da casa é trabalhada como uma trama que conecta ações e relações.

A direção da dinamarquesa May el-Toukhy é precisa, especialmente ao criar imagens impactantes para um filme cuja intensidade parece correr por baixo das camadas apresentadas. Em certo momento, Gustav se despede da família e quando o pai fecha o bagageiro, vemos Anne e as meninas enquadradas por dentro do carro por meio do vidro traseiro, enquanto do rapaz só vemos o corpo. “Cortem as cabeças”, poderia ter gritado a personagem de Alice. Em outra cena, Anne aparece como um reflexo fragmentado em uma janela, como se isso expressasse o turbilhão de conflitos internos que toma conta dela, que culmina em uma explosão dolorosa e silenciosa.

Complexo, difícil e nada óbvio, Rainha de Copas é um interessante estudo de personagens bem amarrado imageticamente.

Nota 4 de 5 estrelas
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