Estante da Sala

[44ª Mostra de São Paulo] Sibéria

Esta crítica faz parte da cobertura da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 22 de outubro e 4 de novembro em formato online.

O frio é desolador e a neve se empilha, funda no lado de fora. Os cachorros, presos em pequenas gaiolas ao ar livre, observam. Os casacos de pele, grossos, escondem as formas humanas. Em meio a esse deserto em que poucas pessoas passam, Clint (Willem Dafoe) mora em uma casa de madeira que também funciona como um espécie de bar e entreposto. Mas a história não é tão literal assim: em Sibéria (Siberia, 2020), o diretor Abel Ferrara pretende explorar a linguagem dos sonhos.

É dessa forma que Clint nos conta do medo que sentia quando precisava ir ao banheiro do lado de fora quando criança, porque os cães o perseguiam e mordiscavam suas canelas. Os medos aparecem. Uma forma selvagem, como um urso, pode ser cruel, mas mais cruel é lidar com as questões edipianas presentes. Em certo momento nada do que vemos é o que aparenta. O personagem encontra pessoas e aparece em outros lugares. Um mergulho em uma caverna sob o bar pode ser o recolhimento para um lugar ancestral, onde Clint e seu irmão (também Willem Dafoe) conversam sobre o pai. O irmão é um duplo de si e como todo duplo, é uma ambiguidade entre vida e morte.

A vida aparece no ventre de uma moça grávida. A morte na tenda no deserto de areia (como veio parar ali?) em que doentes se enfileiram e o pai é um cirurgião. O pai, essa presença que assombra. O pai das pescarias. O pai que o carregou nas costas e que ele não reconhece.

Nos sonhos de Clint há violência e há sexo. Homens são fuzilados. Dentro de outra caverna, há corpos que são claramente filmados para criar abjeção. Um deles é um homem morto enforcado. Mas os outro dois são mulheres e, ainda que vivas, são olhadas pelo personagem como grotescas. Uma é uma mulher com nanismo, em uma cadeira de rodas e outra é uma mulher gorda e nua, dançando, o que poderia ter sido uma imagem de libertação e beleza. O personagem é repelido por elas, como se aqueles corpos não fossem dignos do seu olhar. Mas existem outras, que fazem sexo com ele, essas sim com corpos normativos e que ele aprecia. Uma mulher asiática, que se transmuta em uma mulher negra, que por fim se transforma em uma mulher branca, que ele penetra contra uma mesa e que depois o estrangula enquanto se masturba. Elas são apresentadas assim, intercambiáveis. Em comum, só têm a idade e a forma como são filmadas. Todas são jovens, muito jovens, com um terço, talvez a metade da idade de Willem Dafoe. E todas são filmadas com olhar masculino marcante, que se fixa em especial em seus seios. Outra mulher presente em cena é sua ex-esposa e ela pergunta porque ele havia humilhado ela. Ele respondeu que foi porque ela permitiu e a única culpa dele foi ter amado demais. Se o filme é uma exploração dos sonhos de Clint, é fácil perceber que para ele, alguns corpos femininos são dignos e outros não, mas que os primeiros devem servi-lo (mas há dignidade na servidão?).

Clint é um personagem aparentemente em busca de fazer as pazes com seu próprio passado. Ele é interpretado com intensidade por Dafoe, mas o ator não consegue imprimir tridimensionalidade em um roteiro tão hermético. O começo da jornada na caverna propõe uma imersão psicanalítica, mas a narrativa é tão impenetrável que não é possível saber se a proposta é a observação passiva das imagens, como slides, ou o esforço imenso de autoria compartilhada da obra na montagem do olhar, já que não há pistas o suficiente para entendermos o que, de fato, está acontecendo. Tudo isso é permeado por uma misoginia casual nada velada e uma forte marcação do male gaze. Ao tentar explorar os sonhos de seu protagonista, Ferrara falha em conseguir dar corpo à narrativa em Sibéria, que acaba por apenas externar imageticamente seu olhar pouco acolhedor no que tange a gênero.

Nota: 2 de 5 estrelas
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