Estante da Sala

[44ª Mostra de São Paulo] Welcome to Chechnya

Esta crítica faz parte da cobertura da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 22 de outubro e 4 de novembro em formato online.

Não há dúvidas de que o documentário Welcome to Chechnya (2020), dirigido por David France, com roteiro dele e de Tyler H. Walk, aborda um tema de extrema importância e traz denúncias de violações de direitos humanos que precisam ser ouvidas. As consequências são a grande visibilidade do filme e as premiações, como o Prêmio de Cinema da Anistia Internacional, o Prêmio Teddy de Ativismo e o Prêmio da Audiência Panorama no último Festival de Berlim, além do prêmio de Melhor Montagem de Documentário no Festival de Sundance.

O filme trata do chamado Expurgo contra LGBTIs que vem acontecendo na Chechênia desde 2017. A república russa se destaca dentro do país, sendo uma região de maioria muçulmana e que tem um idioma próprio. O atual presidente, Ramzan Kadyrov, é apresentado com um homem que preza pela masculinidade tradicional e em suas redes sociais se mostra “forte, fiel e feroz na batalha”. Ele defende a “limpeza” do país e, entre as ações de seu governo, há a sistemática detenção, prisão e tortura de pessoas LGBTIs. Como explicado por uma das ativistas que protagoniza o filme, ser LGBTI hoje naquele país é um vergonha que se lava com sangue.

O presidente nega essas ações afirmando que tais pessoas não existem no país e que é impossível prender ou matar quem não existe, mas que, se eventualmente existissem, suas famílias deveriam “dar um jeito”. É um escárnio com quem tenta sobreviver nessas condições. Uma rápida pesquisa para além do doc mostra que as prisões costumam ter soltura antecipada, para permitir que cada família possa se planejar sobre como executar seu parente.

O filme acompanha um grupo de ativistas que ajuda pessoas que correm risco de morte ou se sentem ameaçadas a fugir para outras regiões da Rússia ou, em casos extremos, para outros países. A rede é extremamente organizada, contando com trocas de chips de celulares, pedidos de visto, acolhida nos países de destino e locação de esconderijos, mostrando a capacidade de articulação de todas as pessoas envolvidas.

Os rostos das pessoas que aparecem em processo de fuga são todos digitalmente modificados, para proteger suas identidades. A estratégia gera uma estética incômoda, com um leve borrado flutuando sobre os rostos. Mas há algo muito errado quando a maior parte das discussões sobre esse filme na mídia são sobre tecnologia e deep fake, quando o foco discussão deveria recair justamente sobre a ética das imagens.

Sem dúvida o documentário é capaz de transmitir o peso da perseguição e do extermínio que ocorre hoje na Chechênia. Os relatos são carregados de medo e dor; as marcas de tortura são o testemunho das experiência; as ações de planejamento, quase de cinema, mostram o desespero das medidas e a necessidade de sair dali para sobreviver; e ainda há as lágrimas que demonstram o alívio da possibilidade de recomeçar em outro lugar. Todos esses elementos já seriam o suficiente para dar o peso necessário para o filme-denúncia.

Mas o filme não se furta de ir além e expôr pessoas já vitimizadas. Imagens interceptadas por ativistas são entremeadas àquelas registradas pela equipe. Começa com um espancamento em que os agressores afirmam que gente como o agredido são os culpados por tudo de errado que acontece no país. Depois filma-se o corpo inerte, com direito de zoom nos punhos cortados, de um menino que tentou se matar porque não conseguia se recuperar do trauma da tortura. Em outro momento vemos, pela imagem de uma câmera de vigilância em uma rua, uma mulher ser apedrejada pela família. Por fim, um vídeo de um homem sendo estuprado como punição pela sua orientação sexual. As cenas revoltam o estômago, permanecem assombrando a memória e não informam nada a quem assiste o filme, além da violência que já estava explícita em tudo que já foi mencionado anteriormente.

France fere a dignidade de pessoas que já foram violentadas. E o pior, nos coloca como cúmplices que assistem, sem ação, a essa barbárie. Welcome to Chechnya é poderia facilmente ter sido um outro filme, muito mais eficiente em sua denúncia, se o diretor se preocupasse mais com as pessoas e menos com o choque das imagens.

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