Esse texto foi originalmente escrito em meu perfil no Letterboxd, mas resolvi trazê-lo para o blog.
Em seu livro Alice Doesn’t: Feminism, Semiotics, Cinema, Teresa de Lauretis, em certo momento, discute a relação entre imagem e prazer (tomando emprestado de Laura Mulvey), mediada ou mediando a sexualidade, nos termos de Foucault. Afirma:
Como resultado direto da formação histórica da sexualidade, a representação imagética do corpo, presente do prazer visual do cinema, é um ponto focal de qualquer processo de identificação, exercendo uma influência sobre o espectador comparável apenas à tensão da narratividade (p.82, tradução minha)
Coloca, portanto, a presença do corpo em cena como fundamental na forma como nós projetamos a identificação na narrativa. Entre os exemplos que utiliza, cita justamente Richard Gere em Gigolô Americano (American Gigolo, 1980, dir. Paul Schrader), entre outro, como “não mais do que pequenas violações do código padrão de espectadores”, mas que têm consequências na forma como encaramos o filme. Para a autora
Tem sido freqüentemente contestado que “feminizar” o corpo masculino não altera a polaridade pela qual o corpo desejado só pode ser visto como feminino. A objeção vem dos termos em que o desejo fálico é construído, seus requisitos de repúdio, portanto, para cinema, voyeurismo e fetichismo. Mas não acho que isso ocorra fora dessa construção. Uma objeção mais interessante seria que essas representações do corpo […] não são imagens puras, pura imaginação, mas já estão implicadas na narratividade, portanto superdeterminadas por certas posicionalidades do desejo, uma certa colocação de identificação (p.82, tradução minha)
A leitura que pode ser feita é que não é a simples inversão de performatividade de gênero presente nos filmes mencionados que perturba o processo identificatório: essa performatividade é construída no limite do contexto diegético visando, justamente, unir entendimentos sobre masculinidades e feminilidades de uma maneira que crie a identificação. Preenchida com misoginia e homofobia, a narrativa de Gigolô Americano ainda assim não se furta de tratar o corpo de Richard Gere da forma como muitas vezes corpos femininos são retratados; e rodeá-lo de homoerotismo. A câmera passeia pelo seu torso nu e diversas vezes, quando anda, o foco é sua bunda.
Mas não é no imagético, exclusivamente, que recai o hibridismo dessa performance. A diferença está inscrita na ação: enquanto um corpo másculo muitas vezes é retratado como potente e ativo, mesmo quando capturado pelo olhar desejoso da câmera, Gere aqui é passivamente perseguido. São as mulheres que são sexualmente ativas e literalmente o encurralam contra a parede. É ele que é alvo da polícia por ser um profissional do sexo. É ele que, vulnerável, precisa de uma mulher rica e poderosa que o salve do sistema que criminaliza seu corpo em virtude de sua profissão. Nem de perto ele possui o mesmo tipo de agência que os protagonistas de Magic Mike XXL, apenas para citar um exemplo. No final, nas palavras de Lauretis, o que fica é a “possibilidade imaginária” (e friso o imaginária) de que “a função do corpo de um homem possa ser nada mais (e nada menos!) do que dar prazer para mulheres” (p.83, tradução minha): é essa possibilidade que gera a identificação voyeurística com quem assiste. A leitura cruzada do filme com a obra da autora sem dúvida o torna muito mais interessante do que pode parecer inicialmente.
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