Estante da Sala

A Música da Minha Vida

A maior parte da filmografia da cineasta Gurinder Chadha, de origem indiana mas que mora no Reino Unido, trata de questões pós-coloniais, especialmente de mulheres indianas e sua relação com a metrópole, abarcando, com isso, relações de gênero e sexualidade além de raça, etnia e nacionalidade. Escrevendo dessa forma parece que seus filmes são complexos tratados de antropologia, mas na verdade são obras leves e agradáveis, como Driblando o Destino (Bend It Like Beckham, 2002) e Noiva e Preconceito (Bride and Prejudice, 2004).

Em A Música da Minha Vida (Blinded By the Light, 2019), baseado em uma história real, o protagonista, dessa vez, é um garoto. Javed é um menino paquistanês que, em 1987, enfrenta, além das descobertas comuns da adolescência, a xenofobia e o racismo na pequena cidade de Luton, na Inglaterra. A diferença do acesso a privilégios é marcada desde a apresentação de seu melhor amigo, um garoto branco que mora na casa em frente a sua.

Em plena era Tatcher, o desemprego é rompante e seu pai, como muitos nesse período, é demitido depois de anos sendo explorado no sistema de exploração fabril. A direção de arte destaca a tensão política. Em certo momento se vê ao fundo, em segundo plano, um outdoor em que há uma foto da primeira ministra junto da frase “Uniting Britain” (unindo a Grã-Bretanha). Mas qual e pra quais britânicos? Em oposição, em diversos muros se lê “Pakis out” (fora paquistaneses) e ações de xenofobia e racismo são uma constante, mesmo vindas de crianças pequenas. A marcada presença de neo-nazistas nas ruas traça um claro paralelo com o contexto atual e a crescente radicalização da extrema direita europeia.

Como muitas histórias de migrantes, especialmente de segunda geração, há aqui o conflito entre tradição e liberdade individual, entre família e aspirações pessoais. O pais de Javed deseja que ele tenha uma profissão estável como corretor de imóveis ou administrador, para não depender da indústria, como ele mesmo. Já o garoto deseja ser escritor e perseguir uma carreira jornalística. No cerne disso tudo está a necessidade de filhos de migrantes de precisar sempre se provar melhor que os demais.

É quando Javed é apresentado à obra de Bruce Springsteen por um colega de classe sikh. Nesse momento Chadha filma o rosto do menino em close, com os fones de ouvido de seu walkman postos. As letras das músicas aprecem sinuosas na tela e se projetam sobre muros, dançando em torno do personagem. As frases, escolhidas a dedo, parecem narrar aspectos cotidianos da sua vida e refletir sobre suas angústias pessoais e juvenis. Entre garotas que gostam de Bananarama e garotos que gostam de Wham!, em meio a uma juventude que ouvia todo tipo de música baseada em sintetizadores, Javed se identifica justamente com uma música já de outra geração e de um homem estadunidense branco e passa a tratá-la como algo que guia a sua vida. Existe algo de quase reacionário na forma como ele trata a música de Springsteen, como que fugindo das marcas da própria geração, mas isso é feito com tanta intensidade e uma alegria celebratória que é possível entender o que tanto o inspira.

A ânsia dos jovens sufocados pela tradição de fugir de certas convenções tem diferenças quando se trata de gênero. Aliás, não só dos jovens, já que a mãe de Javed se desgasta horas e horas costurando e ganhando um dinheiro que sempre vai todo para a carteira do pai, deixando clara a dinâmica de gênero que se estabelece dentro do lar. Por outro lado o pai sofre imensa pressão por ter que sustentar a casa e não conseguir. Javed, por sua vez, expressa o desejo de ter a carreira de sua escolha e namora com uma menina branca, a despeito das intenções de seus pais de escolherem uma namorada para ele. As mulheres não têm a mesma opção: por mais que sua irmã também tenha a possibilidade de fugir e quebrar algumas regras, claramente isso não é feito de maneira aberta ou explícita.

Mas apesar dos conflitos, sejam eles geracionais, de gênero, de classe, de raça ou origem, trata-se de um filme feito para mostrar formas de aproveitar as possibilidades da vida e para acreditar nas pessoas e nos seus feitos. Ele é de uma leveza ímpar, fazendo parecer que tudo é possível, mesmo em suas inverossimilhanças. Gurinder Chadha imprime seu estilo festivo e esperançoso, fazendo com que Blinded by the Light, apesar dos temas complexos, seja divertido e otimista de uma maneira única.

Nota: 4 de 5 estrelas
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