Estante da Sala

[8º Olhar de Cinema] Casa

Esta crítica faz parte da cobertura do 8ª Olhar de Cinema- Festival Internacional de Curitiba, que ocorre entre 5 e 13 de junho na cidade. 

Minha mãe nunca me bateu. Uma vez, quando eu era criança, ela me mostrou as cicatrizes lanhadas na sua perna. “Minha mãe me batia com pau de virar polenta”, ela disse. Ela trabalhou desde criança, em casa e fora, cuidando dos irmãos mais novos, mesmo quando não tinha nada para comer e desmaiava de fome na escola, local onde ainda vivia o racismo cotidiano. Isso porque minha vó tinha que trabalhar na costura para que todos pudessem comer da melhor forma possível. Aos 18 anos, muito para fugir dessa vida, ela se mudou de cidade para trabalhar em uma fábrica e lá conheceu meu pai.

Antes disso, bem antes, minha vó trabalhou em casa de fazenda, desde criança. Conta que no inverno ela tinha que pegar o tacho de roupa e alguma ferramenta para quebrar a água congelada do rio. Lavava a roupa até as mãos racharem e sair sangue. As roupas dos outros. Ela era uma criança. Aos 16 se viu casada, muito para fugir dessa vida e aos 17 já tinha minha mãe e depois uma escadinha de filhos. Meu vô mantinha outros relacionamentos desde a primeira semana de casamento e em todas as cidades que moraram, todos sabiam. Minha vó tinha raiva e era uma criança. Descontava na minha mãe, que era uma criança, para não fazê-lo nos mais novos.

Quando minha vó era criança, por sua vez, ela tinha 10 irmãs e 2 irmãos e era a terceira mais velha dentre todos. Minha bisavó era iletrada. Por isso colocou na cabeça que os filhos estudariam. Só os homens. As 11 meninas pouco estudaram e trabalharam na roça e em casa de família para que os irmãos fossem à capital completar os estudos e depois fazer faculdade. Treze foram os filhos que chegaram à idade adulta, mas foram vinte e uma gestações. Minha bisa tinha raiva daquela condição, da miséria, de todo ano estar grávida. Ela culpava meu bisavô por isso e, segundo minha vó, apesar de ela ser de origem indígena e como ele era negro, isso se manifestava em um sutil (ou não tanto) racismo: as filhas com pele mais clara eram tratadas melhor que as demais. Não era o caso da minha vó.

Minha tataravó viveu até meus quinze anos, mas só a vi três vezes, porque morava em uma cidade distante, então não sei dizer qual sua relação com minha bisa. E sobre minha mãe e eu, a história renderia um documentário, mas esse talvez não interessasse a ninguém, então deixo essa história de lado. O que sei é que cresci e, olhando para trás, me vi fazendo parte de uma sequência de mulheres, cada uma transmitindo à outra um legado de dor, mesmo sem querer, porque assim eram suas vidas. Tudo isso emaranhado em uma complexa rede que envolve gênero, raça e etnia e também sexualidade.

Eu invadi a crítica de Casa, eu mesma, porque não é possível assisti-lo sem que a mente divague fazendo conexões e trazendo memórias. Letícia Simões, a diretora, se propõe a fazer um documentário sobre sua mãe, Heliana, mas também só si e sobre sua vó. Explorando sua árvore genealógica, trazendo memórias, filmando conversas e momento íntimos, visitando lugares e registrando antigas fotografias (oriundas do que sua mãe chama de “arquivos implacáveis”), delineia relações familiares que são suas, mas não apenas. A beleza do filme consiste em trazer a riqueza da convivência dessas mulheres, mas fazê-lo de uma forma que não se limite a ser um álbum de família e, sim, que possa ser aberto para fora. As histórias se repetem, ainda mais quando se trata da complexa relação entre mãe e filha.

Letícia começa o filme visitando uma casa de praia em Itaparica, hoje abandonada, onde passavam os verões, e inquirindo sua mãe sobre ela. [pensei na casa dos meus avó, um sítio numa colina em Palhoça, onde cresci comendo tangerina no pé e correndo atrás das galinhas e nunca mais pus os pés depois do divórcio deles, quando tinha 14 anos e o terreno foi vendido]. Heliana às vezes foge dos comentários, tergiversa. As recorrências são o desejo de ter netos e o de que a filha tenha uma profissão que dê lhe dê uma renda adequada. [eu já ouvi essa história].

A vó, Carmelita, é chamada assim, pelo nome, por sua mãe. Heliana também relata a violência física de quando era criança. Nos encontros geracionais, muitas vezes a percepção de uma não corresponde à realidade de outra. Determinados momentos na interação entre elas causam desconforto, já que é palpável o histórico presente, o não-dito, o que poderia ter ficado para trás mas nunca ficou. Raça e etnia e gênero também são postos e a geografia dessas relações se mostra essencial. Se a cidade de veraneio guarda doces lembranças, Salvador, a terra natal da diretora, aparece como um lugar com o qual é necessário fazer as pazes. Para mim, lar é um lugar de pertencimento. Quando Heliana diz que a filha a culpa por não ter uma família, o que isso implica é não sentir que aquela cidade, aquele lugar, possa ser um espaço seu. [não sei se um dia consigo fazer isso com Blumenau]. “Família é conexão com as pessoas”. No final das contas pertencer também constrói o senso de família. Os momentos são entremeados pela leitura de cartas trocadas entre a diretora e sua mãe durante o período de realização do filme, entre 2015 e 2018. Essas dão o tom do humor e inteligência de ambas, mas também do afeto que está ali posto. Como em uma auto-etnografia, o processo de escrita de si é complexo e aqui parece costurar as reflexões proporcionadas pelas imagens. Essas, por sua vez, são dispostas como em um álbum de fotos de família, em que, ludicamente, são feitas intervenções com tinta azul. O resultado final é poesia.

Eu olho no espelho e enxergo nos meus olhos os olhos de minha mãe. Histórias diferentes, vidas diferentes, mas a bagagem está lá. Por cima de seus ombros, minha vó, minha bisa, minha tata. Um filme fala em um pretérito perfeito, mas talvez talvez ele seja imperfeito mesmo, e tudo bem. Casa é um livro de memórias. É uma história de gerações. É um retrato das conexões entre mulheres da mesma família (e talvez por isso os comentários sobre os homens dela pareçam estar deslocados). Mas é mais que isso, já que na construção desse rede de memórias, imagens e afetos, nós também nos vemos ali. E isso mostra o imenso talento de Letícia Simões ao, não só relatar sua história de família, mas fazê-lo de uma maneira que esse retrato seja aberto para conexões externas. Ao fim do filme, Heliana pergunta o que será feito dele. Letícia diz “agora a gente corta e volta pra vida”. Assim como Heliana, queria que fosse fácil na vida como é no cinema.

Nota: 4 de 5 estrelas
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