Texto originalmente publicado na coluna Vestindo o Filme.
Aviso: esse texto contém revelações de detalhes da trama do filme.
“Sim, eu te amei e então tudo que fizemos foi nos ressentir, controlar um ao outro. Nós nos causamos dor. ”
“Isso é casamento. ”
Garota Exemplar é um filme fascinante e manipulativo, que brinca com as expectativas de quem o assiste. Dirigido por David Fincher, seu roteiro foi adaptado por Gillian Flynn do livro homônimo escrito por ela mesma. O figurino é de Trish Summerville, relativamente novata na indústria e que antes desse filme trabalhou em Millennium: Os Homens que Não Amavam as Mulheres, também com Fincher, e Jogos Vorazes: Em Chamas. (Para ler a análise do figurino deste último, acesse aqui). Embora com poucos filmes creditados em seu currículo, Summerville mostra segurança em seus trabalhos. O cuidado que teve para com a narrativa de Garota Exemplar é uma prova. Figurinos confeccionados para filmes de época ou mesmo de fantasia são facilmente elogiados, uma vez que geralmente tem maior apelo visual para o público. Muitas vezes a beleza de um figurino contemporâneo pode passar despercebida, justamente por ser mais sutil. Neste filme, cada detalhe ajuda a contar a história.
Acompanhamos a história sob o ponto de vista de Amy (Rosamund Pike), que, em seu diário, relata sua vida com Nick (Ben Affleck). Eles se conhecem de uma maneira que parece saída de uma comédia romântica, com direito a diálogos afiados e literalmente uma nuvem de açúcar os envolvendo. Amy veste uma camiseta listrada branca e preta, saia, botas de cano alto e sobretudo preto. Ela é uma típica nova-iorquina urbana, que dá preferência a roupas escuras e bem cortadas. Seguindo esse padrão, no dia em que Nick a pediu em casamento, usava um vestido preto e no aniversário de 2 anos de casamento, um floral preto e branco.
Tudo ia bem na vida do casal, até Amy perceber que Nick não se esforçava como deveria. Desempregado, não tinha ambição nem objetivos, mas mantinha um padrão de consumo bastante elevado. O ápice da decepção veio com a necessidade de se mudar para o interior, para ficar mais perto da família dele. Trabalhando em casa e sem amigos, ela troca suas roupas modernas por calças, camisetas e pulôveres confortáveis. Amy deixa de ser quem ela realmente desejava ser. É assim, vestida inteiramente de preto que ela relata a primeira agressão de Nick e o medo constante decorrente dela.
É no aniversário de cinco anos de casamento que Amy desaparece. Nick se torna o principal suspeito. Durante a manhã, ele sai de casa vestindo uma camiseta azul e uma camisa azul claro por cima. Dois dias depois ele ainda está com a mesma roupa, já amarrotada. Ao longo dos anos as roupas dele pouco vão mudar. Sua paleta é composta de azuis e cinzas, às vezes com estampas xadrez e suas roupas são camisetas, camisas de botão, moletons e calças jeans. Lembrando que o relato é sob o ponto de vista de Amy, ele é apresentado como um homem mediano, que não ousa, não a surpreende nem desafia. É um homem comum, apesar de tudo.
Os pais de Amy aparecem para ajudar na busca da filha. Eles são apresentados como pessoas rígidas, que acham que ela jamais era boa o suficiente. Ainda quando ela era criança, criaram a personagem de livros infantis Amazing Amy como uma versão melhorada dela. Por serem entendidos por Amy como essas pessoas insípidas e incapazes de ter laços reais com ela, eles sempre aparecem vestidos em tons de bege.
Amy, que como é revelado, fugiu de casa, ganha peso e começa a vestir roupas desleixadas, largas e sem muito apelo estético, para passar despercebida por onde vai.
Ao ser roubada, precisa recorrer à ajuda de seu ex-namorado Desi (Neil Patrick Harris). Ele é passivo-agressivo e controlador e por isso escolhe as roupas que ela usa e a cor e o corte de seu cabelo. Não deixa de ser irônico, após seu discurso sobre a cool girl, que se adapta aos homens ao seu redor, já que de certa forma ela fez isso, mas por sobrevivência.
Acompanhando pela televisão as notícias e investigações a respeito de seu suposto sequestro, Amy descobre em Nick o homem que aspirava que ele fosse quando casaram. Por isso ela resolve voltar e transformar esse retorno em um verdadeiro espetáculo midiático.
Em um primeiro momento ela vende uma imagem de fragilidade, além de uma feminilidade tradicional, com tecidos fluidos e rendas.
Ao final, quando revela a Nick sua gravidez, ela volta a assumir o controle da situação, a despeito da violência dele, e por isso retoma sua versão nova-iorquina, com um vestido em preto e branco, com corte reto e poucos detalhes. Dessa forma ela demonstra novamente quem é de verdade.
O trabalho de Trish Summerville é impressionante: embora minimalista, casa com perfeição com a narrativa proposta por David Fincher. Até mesmo o fato de todos os personagens principais se vestirem em tons frios ou neutros dialoga com a total ausência de tons quentes no filme. Mesmo o filtro amarelo, que é intercalado ao branco-azulado na fotografia, não é cálido. Em um filme em que a construção dos personagens e nossa percepção a respeito deles é essencial para comprarmos as justificativas de suas ações e entendermos as negociações e reviravoltas, as roupas, mesmo que pouco percebidas, são de extrema importância.
“No que você está pensando? Como está se sentindo? O que fizemos um ao outro? O que faremos?”
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