Estante da Sala

[43ª Mostra de São Paulo] A Vida Invisível (2019)

Esta crítica faz parte da cobertura da 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 17 e 30 de outubro na cidade.

A cena inicial dá pistas, de forma onírica, do que virá a seguir: as duas irmãs, sentadas em meio à mata, conversam até que, ao chegar a hora de ir embora tomam caminhos diferentes. Uma chama pela outra, mas seus caminhos não se cruzam mais, até que os apelos mútuos deixam de ser ouvidos. Guida (Julia Stockler) e Eurídice (Carol Duarte) são opostos que se completam. Na casa de seus pais, a primeira não se furta a reclamar do comportamento do seu genitor, o português Manuel (António Fonseca), para muito espanto da segunda. Guida desafia, Eurídice conforma.

A história é adaptada pelo próprio diretor Karim Aïnouz, em parceria com Inés Bortagaray e Murilo Hauser, do livro A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, de Martha Batalha. A maior parte dos eventos vividos pelas irmãs ocorrem no Rio de Janeiro da década de 1950 e os relatos são epistolares: cartas de Guida que nunca chegam a Eurídice. No filme elas se traduzem em uma narração em off que comenta, melancolicamente, os eventos. Trata-se de um melodrama de cores intensas e calor que irradia, como uma versão tropical de um clássico de Douglas Sirk.

Eurídice queria ser pianista. Seu sonho é estudar no conservatório de Viena. De Guida, não se sabe as pretensões, para além do fato de que está apaixonada por um marinheiro estrangeiro e com ele quer se casar, mesmo sabendo que o pai jamais permitiria. Guida foge. O que fica para trás é seu cheiro sempre presente na almofada do quarto compartilhado com a irmã. Na noite da fuga, Eurídice usa um vestido amarelo completamente fora de corte para seu corpo. Em uma época em que não existia o pret à porter e a roupa seria feita ou em casa ou em uma costureira, de qualquer forma sob medida, isso é muito significativo. As roupas não vestem Eurídice: ela é engolida por elas em completo desconforto. O decote das costas deixa o sutiã aparecer. A parte da frente não se encaixa em seu busto. Eurídice nunca está na sua própria pele, enquanto tenta, obedientemente, seguir as convenções sociais e aquilo que lhe é esperado. Segue assim por boa parte do filme: é a camisola com o busto que não lhe assenta, a alça do sutiã que cai pelos ombros e teima em nunca ficar escondida sob a manga, a combinação aparecendo, mais longa que a saia que deveria ocultá-la. Eurídice, desconjuntada, precisa aprender a ser ela mesma. Já Guida é sempre ela mesma. O vestido verde de caimento impecável abraça suas formas e faz parte de si. Guida não se dobra. E por isso paga um preço.

O casamento não veio, mas veio uma gravidez. Com ela uma tentativa de retorno à casa e uma expulsão. Ana (Flávia Gusmão), sua mãe, representa uma geração de mulheres que abaixa a cabeça e aceita que a obediência às medidas tomadas pelo marido estão acima do bem estar das filhas. Silencia-se. Guida passa uma vida à margem, vivendo livre com outras pessoas marginalizadas, com um filho que, que como foi dito por certa personagem, tinha a sorte de ser homem. Aprende que família não é sangue, é amor.

Eurídice, por sua vez, precisa ser casada para que não siga os caminhos da irmã. O escolhido é Antenor (Gregório Duvivier), uma figura patética, sempre sedento, capaz de performar uma lua de mel ao mesmo tempo violenta e sem excitação. O vestido de noiva de Eurídice novamente é uma peça de desconforto, especialmente os acessórios na cabeça, que a atrapalham todo o tempo. Em determinada cena que retrata essa noite, ela se olha no espelho como se estivesse vendo um fantasma. Eurídice não está de corpo presente. Nos anos que seguem Antenor se mostra um homem medíocre, incapaz de desejar o melhor para sua esposa, sempre defendendo os próprios privilégios. Eurídice não pôde ir atrás da carreira de pianista. “Você era uma promessa”, lhe diz um professor, como que ignorando a sua condição de mulher naquela época. Eurídice queria ser alguém por meio da arte.

Enquanto para algumas pessoas Antenor possa parecer caricato, faz sentido que assim o seja. Quantos pais, avós e bisavós das famílias brasileiras não foram vilões retorcendo os bigodes (esses sim caricatos), mas sim homens medianos e frustrados que tentaram (muitas vezes em vão) impedir a autonomia das mulheres ao seu redor, sejam elas esposas ou filhas? É difícil não lembrar de Ann Kaplan e seu A Mulher e o Cinema em que afirma:

“Podemos ver também como o melodrama familiar, um gênero destinado especificamente para a mulher, funciona tanto para por a mostra as restrições e as limitações que a família nuclear capitalista impõe à mulher, quanto para ‘educar’ as mulheres a aceitar essas restrições como ‘naturais’, inevitáveis – como ‘devido’. Porque parte do que define o melodrama como forma é seu interesse explícito por questões edipianas – relações de amor ilícito (aberta ou incipientemente incestuosas), relações entre mãe e filho, relações entre marido e esposa, relações entre pai e filho: essas são a matéria prima do melodrama, que é totalmente excluída dos gêneros dominantes de Hollywood, os filmes de gangsters e os faroestes” (p.46).

Ou seja, ao mesmo tempo em que constatamos as injustiças provocadas pelo conservadorismo que rodeia as duas irmãs, aceitamos elas como parte da sociedade de então e das hierarquias familiares entre pai e filhas ou marido e esposa. Mais que isso:

“No único gênero (o melodrama) que, como vimos, constrói uma expectadora feminina, ela como tal é obrigada a participar de uma fantasia masoquista. […] Nos gêneros clássicos mais importantes, o corpo feminino é a sexualidade, fornecendo o objeto erótico para o espectador masculino. Nos filmes de mulher, o olhar deve ser deserotizado (já que o espectador agora é supostamente feminino), mas quando isso é feito, o filme termina por descorporificar seus espectadores. Os roteiros, reiteradamente masoquistas, efetivamente imobilizam a espectadora feminina. O prazer lhe é recusado, naquela identificação imaginária, que como Mulvey aponta, funciona para o homem como uma repetição da fase do espelho. Os heróis masculinos idealizados da tela devolvem ao espectador masculino seu ego mais perfeito espelhado, junto com uma sensação de domínio e controle. Para a mulher, ao contrário, são dadas apenas figuras vitimizadas e impotentes que, longe de serem perfeitas, ainda reforçam um sentimento básico preexistente de inutilidade” (p.50)

Dessa forma, temos uma Eurídice que não é dona da própria sexualidade, que não tem erotismo para si, assim como demora para ter as rédeas sobre o que quer para sua vida e temos uma Guida que, por exercer essa sexualidade é punida (pelo pai, pela sociedade e com um filho que inicialmente não queria ter). Guida ainda tenta, de alguma forma, controlar sua vida sexual, mas sua liberdade é reivindicada por outros homens em torno dela. Nós nos conectamos com as protagonistas e sofremos junto com elas. E a consequência desse processo de identificação é a contatação de que, apesar de muito ter mudado da década de 1950 para às vésperas da década de 2020, o peso da desigualdade de gênero ainda prevalece. A espectadora, conectada a Eurídice e a Guida suspira (e provavelmente chora), pensando no que viveram sua avó, sua mãe e ela mesma. Mesmo que não haja aceitação do machismos estrutural, há uma certa conformação ao fato de que teremos que enfrentá-lo, pois essa (ainda) é nossa sociedade. Essa conformação pode ser expressa em uma cena pequena, mas muito significativa: quando a filha de Eurídice, ainda criança, passa o aspirador de pó no chão da casa.

É claro que Guida e Eurídice não são figuras inertes e sem agência. Elas são, inclusive, beneficiadas grandemente pela interpretação das atrizes e seus pequenos gestos e nuances. Karim Aïnouz costura as narrativas paralelas dessas duas heroínas trágicas do cotidiano com grande delicadeza e com beleza artística. Toda a estética do filme é recompensadora aos olhos mais atentos, com uma poética visual muito própria. Eurídice chega, mesmo, a colocar tudo o que elas deixaram de viver em uma música, que com sua intensidade expressa os não ditos. As personagens nunca se rendem. Mais do que isso, apesar do isolamento imposto pelos homens ao redor delas, a força e a imagem de cada uma nunca deixa de afetar a outra. Elas lutam, cada uma a sua forma, para continuar sendo elas mesmas, em um mundo que tenta lhes tolher a individualidade e o direito de escolha. Se fosse para desdobrar o texto de Ann Kaplan, diria que masoquisticamente nos colocamos ao lado delas na batalha do cotidiano, que é a nossa mesma. A Vida Invísivel é a história de Eurídice e de Guida, mas é a história de nossas mãe e avós, e a nossa, que nunca termina.

Nota 5 estrelas de 5
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