Estante da Sala

[43ª Mostra de São Paulo] Dois Papas (The Two Popes, 2019)

Esta crítica faz parte da cobertura da 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 17 e 30 de outubro na cidade.

Extremamente divertido. Esse não é a descrição que esperaria utilizar para descrever um filme sobre duas figuras eclesiásticas, mas é um resumo perfeito para Dois Papas, escrito por Anthony McCarten e dirigido por Fernando Meirelles. O filme mostra as eleições do cardeal Ratzinger (Anthony Hopkins, com lentes de contato castanhas) e do cardeal Bergoglio (Jonathan Pryce), que assumiram os nomes de papa Bento XVI e Papa Francisco, respectivamente, no mais alto cargo da hierarquia da Igreja Católica.

Em 2005 morreu o papa João Paulo II, resumido no filme como alguém que lutou pelos direitos humanos, mas conservador no que diz respeito aos costumes. A igreja, nesse momento, precisava fazer uma escolha: eleger um novo líder conservador, alinhado com a tradição, ou progressista, tendo em vista a perda de fiéis que havia se se ampliado nos últimos anos, motivada pela falta de conexão entre a doutrina e a vida das pessoas. Os defensores da primeira medida venceram, com a eleição de Ratzinger. O filme traduz para aqueles que não são da religião os ritos e meandros envolvidos nesse processo, que passa pela reunião de cardeais de todo mundo, a própria votação e suas especificidades, até a fumaça branca que anuncia o habemos papam.

O que ocorre daí em diante é a ficcionalização dos encontros entre Ratzinger e Bergoglio e suas conversas. Embora seja uma narrativa bastante tradicional, o ponto forte está nos dois atores, que são colocados lado a lado com tanta naturalidade, como se não houvesse esforço nesse processo, que passa ao público a falsa impressão de que eles não interpretam, apenas são. É fácil se perder na apreciação do talento deles, que é auxiliado por um ótimo texto, com diálogos afiados e cheios de humor (que não deixa de fora nem mesmo pequenas piadas sobre suas origens, seja alemã, seja argentina).

A trilha sonora também é muito bem escolhida, pontuando os momentos certos, do Besame Mucho ao Dancing Queen casualmente assoviado, e é usada como ponte para algo que é corrente em todo filme: a humanização de seus protagonistas. Se por um lado não tenta justificar o fato de Ratzinger ter integrado a juventude de Hitler, por outro coloca em discussão o fato de Bergoglio, uma figura muito mais carismática, ter negociado com pessoas de autoridade durante a ditadura na Argentina. O que fica no ar com isso é porque o tratamento diferenciado entre os dois passados, embora fique claro que o peso das ações são carregados até hoje.

O trabalho de direção de arte é essencial para estabelecer as diferenças entre os dois. Enquanto Bento XVI é retratado colocando sequências de anéis de ouro, seu grande crucifixo com grossas correntes, também de ouro, e o vistoso sapato de couro vermelho, ornando com sua batina branca, Bergoglio só usa seu traje negro e vermelho de cardeal quando obrigado, usa botinas gastas e uma singela cruz de prata. Mesmo quando já eleito Francisco, abre mão dos adornos papais usuais. Os mobiliários são minimalistas e dão espaço para destacar a interação dos atores, mas também a opulência dos tesouros que o Vaticano detém. É possível ter um vislumbre do histórico da instituição quando se trata das artes e riquezas quando, em certa cena, a câmera abre e o recinto se ilumina para revelar que os protagonistas estão na Capela Sistina.

Infelizmente há inserções de flashbacks em preto e branco para estabelecer a juventude de Bergoglio na Argentina e Uruguai, o chamado para a vocação religiosa, sua relação com a teologia da libertação e seu colaboracionismo com a ditadura. Esses são os momentos que enfraquecem a narrativa, que seria muito mais interessante se focasse apenas no embate entre os atores principais.

O filme ganha quando destaca a pequenez de seus protagonistas diante da história longeva da instituição da qual fazem parte e as diferenças, quando se trata de postura e de opinião, entre ambos. Melhora ainda mais quando os estabelece como humanos, pequenos e falhos, sabendo que “verdade sem amor pode ser insuportável”, como afirma Bento XVI, e que é preciso “lutar contra a tirania da estrutura econômica mundial desigual”, conforme Francisco. Dois Papas é ótimo na medida em que aproveita o grandes atores principais para estabelecer as personalidades conflitantes de seus protagonistas. E é extremamente divertido.

Nota: 4 de 5 estrelas
Share

1 thought on “[43ª Mostra de São Paulo] Dois Papas (The Two Popes, 2019)

Leave a Reply

Your email address will not be published. Required fields are marked *