Estante da Sala

[43ª Mostra de São Paulo] Parasita (Gisaengchung, 2019)

Esta crítica faz parte da cobertura da 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que ocorre entre 17 e 30 de outubro na cidade.

Conhecido pela inventiva mescla de gêneros cinematográficos em suas narrativas, o diretor Bong Joon Ho volta, depois de Okja, a falar abertamente sobre as irreconciliáveis tensões entre classes sociais, como já havia feito em Snowpiercer. Parasita é uma intensa reflexão sobra as dinâmicas sociais que regem as relações entre ricos e pobres, pautadas, muitas vezes em situações despropositadas. Com roteiro do próprio Joon Ho, junto com Han Jin Won, o filme apropriadamente começa como uma comédia de absurdos centrada na família Kim.

Os Kim estão entre aqueles mais desprivilegiados na sociedade. O pai Ki-taek (interpretado pelo ator Kang-ho Song, recorrente na filmografia do diretor), a mãe Chung-sook (Hye-jin Jang), a filha Ki-jung (So-dam Park) e o filho Ki-woo (Woo-sik Choi) estão todos desempregados. Moram em uma espécie de porão sujo e entulhado, com apenas uma pequena janela para a parte final de um beco, que costuma se usada como banheiro por outras pessoas que por ali passam. Usam o wifi de terceiros, quando os encontram abertos, porque não têm condições de ter seu próprio. Sem perspectivas, aceitam trabalhos que não pagam bem e ainda assim não realizam essas tarefas da maneira ideal. Aquele espaço insalubre não é um lugar adequado para trabalhar, nem comer, nem dormir, muito menos viver em tempo integral.

Os espaços e a arquitetura dos lugares acabam por ser chave para a forma que Joon Ho constrói sua história. A contrapartida dos Kim, são os Park, família composta pela mãe Yeaon-kyo (Yeo-jeong Jo), o pai Dong-ik (Sun-kyun Lee), a filha Da-Hye (Ji-so Jung) e o filho Da-song (Hyun-jun Jung), espelhando, portanto, a estrutura familiar dos outros. Quando o tutor de inglês da garota viaja para estudar no exterior, eles precisam contratar um novo. Coincidentemente ele é amigo de Ki-woo e o indica para a função. Nesse momento é deixado claro que o rapaz da família Kim era o melhor aluno de inglês entre os amigos, só que nunca conseguiu chegar a uma universidade. O fato foi corrigido pelas habilidades de falsificação de sua irmão, que lhe cria um diploma e garante o emprego. Os acesso, portanto, não é pautado nas habilidades individuais, mas na forma como elas são validadas por determinados dispositivos burocráticos.

Um a um os Kim assumem novas identidades e passam a trabalhar para os Park. A casa desses segundos tem a autoria de um famoso arquiteto que lá havia residido mencionada reiteradamente. Esse fato é importante para percebermos sua configuração. Não só há um contrate entre a pequena janela dos desprivilegiados e o pano de vidro da casa dos ricos, que, dessa forma, podem usufruir de um terreno idílico que faz parte de sua propriedade, como a configuração vertical da edificação acentua as diferenças sociais. Se os Kim literalmente moram num porão, abaixo do nível da sociedade, a casa dos Park é dividida em planos acessados por escadas, que forçam o deslocamento vertical constante entre aqueles que a frequentam. A entrada, pelo pequeno portal, já revela uma escada que sobe para o nível do terreno. O térreo da casa, onde estão a sala de estar, cozinha e sala de jantar, é onde a governanta trabalha. Mais um lance de escadas e chegamos à área privativa e os quartos dos patrões. Do térreo, se desce para uma garagem subterrânea que serve também de despensa e por onde circula o motorista. Mas o mais importante: se cada um desses andares simbolicamente retrata um extrato social, o arquiteto sabia que o subsolo não deveria parar ali. Descendo mais um lance de escadas revela-se uma espécie de bunker que, significativamente, abriga o que é esquecido por todos. Esse tipo de dinâmica, que não é nova, aparece em retratos de sociedades altamente estratificadas, como a britânica, em produções como a significativamente chamada Upstairs, Downstairs, replicada em Downton Abbey. A diferença é que Joon Ho acrescenta a dinâmica capitalista para questionar tanto a meritocracia quanto a lógica patronal pautada nela, expressãndo através do sobe e desce retratado naquele cotidiano a expressão da própria relação entre as classes sociais, visíveis ou invisíveis.

Nesse sentido é curiosa como os Park são criados como pessoas absolutamente desconectadas da realidade que os rodeia, incapazes de demonstrar interesse ou preocupação com os demais. Sinestesicamente, Joon ho nos faz sentir, junto com eles, o cheiro que eles acreditam que diferencia os demais deles mesmos. O estilo de vida estéril da família não os permite enxergar exploração ou predação nas relações que entabulam, mesmo que simbolicamente, como quando se apropriam de elementos visuais relacionados aos povos indígenas americanos. Por isso é interessante como o título despista o espectador: se a princípio somos levados a crer que os Kim são parasitas, que se instalam na casa dos Park vivendo às suas custas e da estrutura arquitetônica e social que eles dispõem, depois percebemos que os Park é que parasitam a sociedade como um todo. O modo como eles e seus amigos vivem, sem produzir nada e ainda assim se refestelando com seus bens e suas iguarias, só é possível às custas da exploração dos demais, que, sem ter outros meios, passam a se ver obrigados a viver às margens de pessoas como eles.

E se o filme começa como uma comédia, apostando nos truques e trapaças dos Kim, logo se desdobra para o horror e para o drama, as únicas formas possíveis para lidar com a injustiça e o descaso. O drama é usado como possibilidade de comentário político, mas o terror como o retrato da violência como única possibilidade para se ter uma resposta pronta para a desigualdade social estrutural e estruturante. Catártico e ao mesmo tempo anticlimático, Parasita instiga uma reflexão acerca da estratificação e da quase impossibilidade de deslocamentos entre classes sem que haja uma brusca ruptura no tecido social.

4,5 de 5 estrelas
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4 thoughts on “[43ª Mostra de São Paulo] Parasita (Gisaengchung, 2019)

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