Estante da Sala

Chi-Raq (2015)

Chi-Raq é dirigido por Spike Lee e escrito por ele em parceria com Kevin Willmott, inspirados pela peça Lisístrata, de Aristófanes. Na comédia, a personagem de mesmo nome é uma ateniense que, cansada da prolongada Guerra do Peloponeso, propõe que as mulheres se abstenham de sexo com seus maridos e amantes até que eles negociem a paz. No filme, Lisístrata é interpretada por Teyonah Parris e a guerra passa a ser a violência urbana nas periferias de Chicago, encarnada na ficção pelas gangues de Espartanos (de roupas roxas) e Troianos (de laranja). A cidade tem estatísticas de morte piores do que as das guerras no Oriente Médio, conforme é explicado logo no começo, e por isso detém o apelido de Chi-Raq. Os diálogos são proferidos através de rimas e é interessante acompanhá-los, pois partem da ideia de uma poesia clássica e se estabelecem como um rap fluido e cadenciado.

Além da protagonista, também se destacam no ótimo elenco Nick Cannon interpretando um rapper fictício e espartano chamado Chi-Raq; Wesley Snipes como Ciclope, o líder dos troianos; e Angela Basset como Miss Helen, uma mulher que guia as mais jovens com seu conhecimento. O narrador, Dolmedes, vivido por Samuel L. Jackson é um dos pontos fortes do filme, enquanto John Cusack e seu Padre Mike parecem meio perdidos na narrativa.

A violência urbana é retratada como aquela que tolhe a vida dos jovens e crianças. Ela é mostrada apenas como originada na guerra entre gangues, sem mencionar policiais, acesso a armas e mesmo o contexto sócio-econômico. Os momentos de dor são realistas e tocantes. Mas o tom do filme é inconsistente, uma vez que o drama real faz um contraste por vezes incômodo com a abordagem farsesca. E se na peça, uma comédia, a abstinência das mulheres funciona, aqui, em contraste com o luto de determinados personagens, ela parece despropositada e ingênua.

Foi difícil não traçar paralelos com Mad Max: Estrada da Fúria, dada a proximidade temática e da data de lançamento dos dois filmes. Ambos são produtos de um homem roteirista-diretor. Ambos são protagonizados por mulheres lutando por algo melhor em um mundo que foi destruído pelos homens (e o questionamento “quem matou o mundo?”, presente em Mad Max, é bastante impactante nesse sentido). Mas no filme de George Miller as mulheres-protagonistas, que haviam sido reduzidas a propriedades devido a seu potencial reprodutivo, rebelam-se cortando seus cintos de castidade enquanto clamam por seu status de seres humanos, e não objetos. Já em Chi-Raq, as mulheres literalmente colocam em si mesmas os cintos de castidade e se apresentam como objetos do desejo masculino, quase sempre alheias aos seus próprios. A agência das personagens (duplamente escrita por homens, na fonte original e na adaptação) existe, mas ela é limitada à negação do que é apresentado como um direito masculino. Além disso, a greve de sexo só funcionaria em um contexto heteronormativo e o único momento em que isso é contestado, é em tom de piada.

Ainda que tenha seus problemas na forma em que tentou encaixar a farsa no drama real, o filme é impactante e marcado pela força de suas protagonistas. O peso emocional é maior justamente quando ela é deixada de lado e as histórias dos personagens emergem de forma mais natural. No contexto atual da violência nos Estados Unidos (e no Brasil, diga-se de passagem) contra populações negras e pobres, com o verdadeiro genocídio de todo uma juventude, Chi-Raq aparece como um necessário grito de dor e de raiva e um pedido por união de forças pungente e bem intencionado. O espírito combativo do filme, juntamente com a direção de Spike Lee e a atuação de Teyonah Parris ajudam carregá-lo.

3,5estrelaschi-raq

 

 

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