Texto originalmente publicado na coluna Vestindo o Filme em 09/10/2013.
Certos filmes não só marcam época, como estão à frente de seu tempo em determinados aspectos. É o caso de The Rocky Horror Picture Show, musical hoje cult de 1975, adaptado da peça de teatro que estreou em Londres em 1973. A trama é inspirada nos filmes clássicos de ficção científica. A direção fica por conta de Jim Sharman e o figurino é de Sue Blane. A adaptação não se distanciou do formato teatral, com atuações marcantes e poucas trocas de roupas e de cenários. Os atores da versão teatral repetiram seus respectivos papéis, com exceção do casal de protagonistas, que foi interpretado por atores americanos.
Um dos elementos que torna o filme marcante é seu comentário a respeito dos papéis sociais de gênero e da sexualidade, feito por meio dos personagens. Como papéis sociais de gênero entendemos tudo que é associado aos conceitos de feminino e masculino e que é socialmente construídos.
No começo da história temos os dois protagonistas, Janet Weiss (Susan Sarandon) e Brad Majors (Barry Bostwick), assistindo ao casamento de amigos em comum. Lá, todas as mulheres se vestem em tons pastel, para realçar seus comportamentos dentro de padrões esperados de feminilidade. Janet e Brad atuam como arquétipos dos dois gêneros. Ele mostra-se visivelmente nervoso com a ideia de casar, ainda mais depois de ela ter pego o buquê de flores. Ela quer isso acima de tudo. A sexualidade é generificada, possui conceitos socialmente definidos do que se espera do homem e da mulher. Os desejos são expostos na pintura na lataria do carro do casal que parte para a lua de mel “Espere até hoje à noite. Ela teve o seu agora, ele terá o dele”, explicitando a ideia de que a mulher quer o romantismo e o homem quer o sexo.
Após a saída dos noivos, Brad acaba por pedir Janet em casamento, em frente ao cemitério, com um grande coração entre os dois. A roupa de Janet, clara como as das demais mulheres, é lilás e combina com o tom do buquê que há pouco havia segurado. Já Brad usa blazer tradicional, com gravata borboleta e faixa xadrez. Ambos se deslocam enquanto cantam, mas entre eles sempre aparece um altar simbólico: primeiramente uma lápide no cemitério e depois um caixão, no interior da igreja, simbolizando o sentido do casamento.
Nesse momento é interessante reparar no casal que cuida da igreja parado à sua porta tal como na pintura American Gothic, de Grant Wood, que aparecerá posteriormente.
O casal depois viaja, mas ocorre um problema com o carro no meio da noite chuvosa, quando estão perdidos. Dirigem-se a um castelo que fica nas redondezas, chegando lá com suas roupas encharcadas. Novamente Brad veste roupas simples de bom moço, um tanto sem graça na sua combinação de bege, cinza e azul claro, demonstrando que ele, enquanto homem, não se importa com a aparência. Já Janet emana frágil feminilidade e inocência em seu vestido rosa claro com cardigã branco.
No local está acontecendo uma convenção com as pessoas do planeta Transexual da galáxia Transilvânia. A primeira vista que temos do anfitrião, Frank-N-Furter, são seus sapatos com salto altíssimo, utilizados juntamente com uma meia arrastão. A figura alta e imponente, com maquiagem carregada, se esconde atrás de uma capa negra com golas amplas prateadas, um misto de vampiro com alienígena.
Ao retirar a capa, revela estar vestindo corpete, cinta liga, luvas e um colar de pérolas. Quando canta que é apenas um doce travesti de Transexual, Frank-N-Furter brinca com nossas expectativas: é másculo e efeminado ao mesmo tempo e seduz a todos.
Mas o que é se travestir? Travestir-se nada mais é que incorporar em suas roupas peças de vestuário que são consideradas do sexo oposto, independente da sua identidade de gênero. O que entendemos como travestismos muda de acordo com o local e a época, por se tratar de algo vinculado ao gênero. Quando vestia calças pretas com camisas, Coco Chanel estava se travestindo no contexto da Europa da década de 1920. Homens utilizaram roupas que podem ser consideradas saias ou vestidos durante milênios e tais vestes ainda hoje fazem parte de trajes típicos de certos locais, como Escócia e Grécia, por exemplo.
Calças, por limitações das técnicas de costura e dos tecidos, tornaram-se comuns apenas ao longo da Idade Média. Embora movimentos feministas tentassem popularizar o uso delas por mulheres ao longo do século 19, foi apenas a partir da década de 30 do século 20 que tal uso deixou de ser estigmatizado (com a ajuda de estrelas de cinema, como Marlene Dietrich e Katharine Hepbun, diga-se de passagem).
É fácil perceber que a incorporação de elementos ditos masculinos no guarda-roupa feminino é muito mais facilmente aceito. Atualmente mulheres podem usar calças, blazers, camisas, coletes e gravatas sem maiores problemas. Mas o contrário, homens utilizando saias, sapatos com salto e maquiagem, ainda gera muita polêmica, já que em uma visão machista feminilizar-se significa abrir mão de seu papel de dominância. O que não deixa de ser interessante, visto que alguns desses elementos fizeram parte do vestuário masculino até bem pouco tempo atrás, no final do século 18. Os limites do que se considera apropriado são arbitrados.
Despidos de suas roupas molhadas, Brad e Janet passam a noite no castelo. Primeiro vão ao laboratório, local repleto de elementos vermelhos, representando a paixão de Frank-N-Furter. Lá assistem ao nascimento de Rocky Horror (Peter Hinwood), o homem forte, loiro, bronzeado e de sunga dourada criado pelo cientista.
O doutor também usa um vestido verde musgo com um triângulo vermelho-rosado. O triângulo é símbolo do orgulho LGBT, reapropriado do triângulo rosa de cabeça para baixo com que homossexuais tinham as roupas marcadas durante o regime nazista na Alemanha. É emblemático o uso dele no filme em um período em que o movimento LGBT crescia em organização política.
A influência da estética punk, movimento que também estava em ascensão nesse período, pode ser percebida tanto na roupa de Eddie (Meat Loaf) quanto na jaqueta que Frank-N-Furter utiliza sobre o corpete.
Em seguida o casal vai dormir em quartos separados. A iluminação novamente frisa a oposição entre os gêneros, tornando o quarto de Janet vermelho e o de Brad branco azulado.
Nessa noite cada um vai descobrir sua própria sexualidade. Por isso em uma das sequências musicais finais, Rocky Horror, Janet, Brad e Columbia (Nell Campbell) aparecem todos em um palco devidamente trajados com suas cintas-ligas e corpetes, na companhia do doutor Frank-N-Furter. É como um convite para a libertação das amarras que possam ter em função dos papéis de gênero que lhe foram ensinados. Anteriormente o doutor havia zombado de Brad, falando “Um perfeito espécime de masculinidade. Tão dominante!”. E cá temos ele cantando sobre se sentir sexy, enquanto Janet canta sobre estar livre.
Ao final, Riff Raff (Richard O’Brian) e sua irmã Magenta (Patricia Quinn) aparecem em sua versão alienígena, com uma túnica dourada com detalhes em preto e mangas exageradas remetendo às ficções científicas da década de 1950, usada igualmente por ambos. O cabelo dela também faz referência ao filme A Noiva de Frankenstein, clássico da Universal de 1935.
The Rocky Horror Picture Show completou trinta e oito anos de lançamento recentemente e continua sendo um filme ousado. Temos dois protagonistas que começam sua jornada como modelos tradicionais de sexualidade e de vestimenta e que se desconstroem em relação a esses aspectos ao longo das experiências passadas no castelo. Ao mesmo tempo uma nova corporalidade é construída, por meio do rompimento das regras preestabelecidas de gênero. O filme possui uma estética fortemente ligada à transgressão, sendo essa o fim de qualquer tipo de repressão contra identidades de gênero e a livre expressão da sexualidade. Valores e significações são revistos. Considerando o retrocesso que vemos atualmente em várias áreas ligadas justamente à gênero e sexualidade é de se perguntar se alguém teria coragem de fazer uma obra como essa nos dias de hoje.
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