Estante da Sala

Mulheres-Ciborgue, ficção científica e alguns comentários

Esses dias eu estava lendo o Manifesto Ciborgue, que acho que deve ser o trabalho mais famoso da Donna Haraway, pesquisadora do campo de gênero que estuda ciência e tecnologia. Lançado originalmente em 1985, o manifesto trata sobre o que a autora chama de ciborguização do corpo, ou seja, a forma como através de ferramentas farmacológicas e mesmo prostéticas, como lentes ou órgãos artificiais, rompemos a barreira dos nossos corpos levando-os para além do limite da pele. Tudo isso muito antes da tecnologia presente em um smartphone, a prótese-mor do nosso cotidiano. Por fim, a autora analisa questões vinculadas à reprodução, que sob o seu ponto de vista feminista-socialista é entendida na sociedade como um trabalho generificado, marcado como obrigação das mulheres cisgênero*. Ela aborda como novas tecnologias reprodutivas diminuiriam o peso dessa divisão de trabalho.

antropologia do ciborgue

Outras autoras vão além: Marika Moisseeff, antropóloga francesa, defende que o fato de as mulheres cisgênero* serem responsáveis quase que exclusivamente pela gravidez cria assimetrias inconciliáveis na relação entre homens e mulheres. A respeito da obra Admirável Mundo Novo, ela escreve:

Huxley repete: ‘Civilização é esterilização’, ou seja, a erradicação da maternidade. Para ser verdadeiramente humano, inteiramente ‘civilizado’, é preciso gozar plenamente, isto é, libertar-se do jugo reprodutor. O erotismo é apanágio da humanidade. Ele se inscreve plenamente na cultura, ao passo que a reprodução natural rebaixa ao nível da natureza e, consequentemente, da animalidade […] Portanto, desde 1932, Huxley associa a emancipação sexual ao controle da fecundidade. E, de fato, a liberdade sexual e a igualdade dos sexos devem-se aos métodos desenvolvidos para controlar a fertilidade. Na realidade, a gravidez — fase da reprodução sexuada delegada exclusivamente às mulheres — conduz a uma assimetria entre os sexos que é praticamente intolerável no contexto de uma ideologia baseada na igualdade. Sob essa ótica, a igualdade entre homens e mulheres deve passar pela simetria dos papéis sexuais masculinos e femininos, paternos e maternos (MOISSEEFF, 2005, p. 237).

Ainda a respeito da ciborguização e falsa dicotomia que criamos entre corpo e máquina, Haraway escreve:

A cultura high-tech contesta – de forma intrigante – esses dualismos. Não está claro quem faz e quem é feito na relação entre o humano e a máquina. Não está claro o que é mente e o que é corpo em máquinas que funcionam de acordo com práticas de codificação. Na medida em que nos conhecemos tanto no discurso formal (por exemplo, na biologia) quanto na prática cotidiana (por exemplo, na economia doméstica do circuito integrado), descobrimo-nos como sendo  ciborgues, híbridos, mosaicos, quimeras. Os organismos biológicos tornaram-se sistemas bióticos – dispositivos de comunicação como qualquer outro. Não existe, em nosso conhecimento formal, nenhuma separação fundamental, ontológica, entre máquina e organismo, entre técnico e orgânico. A replicante Rachel no filme Blade Runner, de Ridley Scott, destaca-se como a imagem do medo, do  amor e da confusão da cultura-ciborgue (HARAWAY, 2000, p.91).

maria

Depois dessas leituras, não tenho como negar que meu corpo é sim, ciborgue. Hormônios controlam e bloqueiam meu ciclo reprodutivo; lentes que se projetam além da minha córnea auxiliam a minha visão no momento em que digito essas palavras; quando saio da frente da tela do computador, um dispositivo colado em minha mão apita notificações de interações vindas de diversas redes de contato. O corpo nunca é só um corpo. Para Haraway, se o que temos por corpo é a soma de uma base orgânica e de tecnologias que aplicamos a ela, discursos de cominação pautados em argumentos sobre uma suposta “natureza” humana automaticamente devem ser descartados. A falsa Maria de Metrópolis, de Fritz Lang, poderia simbolizar o medo e a fetichização das novas tecnologias. Mas são as replicantes Zhora, Rachel e Pris, que, apesar de apresentadas como criaturas antropomórficas que se disfarçam por sua equivalência visual a manequins e brinquedos, revelam a maior humanidade. Em Blade Runner, Ridley Scott sabe que a humanidade é ciborgue e a negação do ciborgue é que é desumana.

blade

*Nenhuma das duas autoras se referem, em seus textos, especificamente às mulheres cisgênero. Esse é um recorte que eu fiz, uma vez que vincularam a reprodução a todas as mulheres, o que não corresponde à realidade. Mulheres transgênero não gestam e, por sua vez, homens transgênero podem fazê-lo, mas essa capacidade não é vista como uma obrigação social e um fim de seus corpos.

Referências:

HARAWAY, Donna. Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: HARAWAY, Donna; HARI, Kunzru; TOMAZ, Tadeu (org.). Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.

MOISSEEFF, Marika. O Que se Encobre na Violência das Imagens de Procriação dos Filmes de Ficção Científica. Mana. Rio de Janeiro, v.11 n.1 p.235-265, 2005.

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