Assistido em 02/11/2013
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A década de 1980 não foi um período fácil para o cinema. Embora, obviamente, possa ter saudosismo em relação a muitos filmes da minha infância, não dá para negar o estrago. Até 1968 a produção de cinema era feita sob o Código Hays, que proibia uma série de itens expostos na trama, como relações interraciais, tráfico de drogas, ridicularização de religião, doenças venéreas, entre outros. Por isso é comum termos a impressão que filmes antigos eram mais “limpos”, embora violência e sexualidade ainda assim fossem assuntos abordados, mas de forma velada (alô, Gilda!). Dizem que a iniciativa de criação do código veio após o lançamento de Scarface, que chocou com sua violência explícita (e incesto velado) no contexto da época. Nos anos 70, com a desencantamento que veio após os movimentos dos anos 60 (contracultura, hippies, black power, feminismo, etc) e a escalada da violência urbana nas grandes cidades americanas, uma geração de cineastas surgiu com filmes “sujos” e desiludidos (Taxi Driver, agora estou falando de você). Aí vieram os anos 80 e um forte sentimento de escapismo. Diretores como George Lucas, Steven Spielberg e Robert Zemeckis criaram um formato de filme que deixava de ter um ponto de vista, história, ou abordagem adultos para criar uma visão infantil de mundo, voltada para o modelo de blockbuster. Os diretores de filmes com temática adulta ficaram um tanto quanto perdidos nesse período. A erotização da violência passou a ser uma ferramenta bastante utilizada, basta ver a quantidade de thrillers eróticos e filmes de terror slasher feitos até o começo dos anos 90.
E então chegamos a Cabo do Medo, de 1991, dirigido por Martin Scorsese. Scorsese não parece ter se perdido na década de 80. Seus dois trabalhos anteriores a esse foram A Última Tentação de Cristo e Os Bons Companheiros. Cabo do Medo é uma regravação de um filme de 1962, Círculo do Medo, e possui elementos muito problemáticos. Trata-se de uma história de vingança: Max Cady (Robert De Niro) saiu da prisão após catorze anos de pena (por estupro e agressão de uma menina de dezesseis anos) e pretende vingar-se de seu advogado, Sam Bowden (Nick Nolte), pois acredita que ele o prejudicou ocultando documentos quando do julgamento. A família Bowden apresenta-se como uma família de comercial de margarina, mas Max o tempo todo afirma que eles são infelizes. É fato que Sam flerta com uma colega de trabalho e sua esposa, Leigh (Jessica Lange) o acusa de já ter feito isso antes. Já a filha de quinze anos, Danielle (Juliette Lewis) é uma das piores criações de adolescente que já vi. Max espreita a vida deles como uma ameaça constante, criando terror em Sam. Ao mesmo tempo a família demonstra ter sérios problemas de comunicação, pois ele jamais explica plenamente o que está acontecendo para a esposa e a filha. Mantem-se no seu papel superior de dominância, acreditando que conseguiria dar conta do problema sozinho.
A montagem com cortes rápidos e a trilha sonora espalhafatosa envelheceram bastante mal. O figurino vistoso de Max frisa seu tempo de prisão, pois ele continua usando suas roupas do final da década de 70. As atuações são mistas: Jessica Lange faz um overact que não funciona, ao passo que o de De Niro convence, embora quanto mais próximo do final do filme, menos crível e mais sobrenatural parece seu personagem. Nick Nolte está apenas satisfatório no papel e Juliette Lewis interpretou muito bem o que parece ter sido decisão da direção: a falta de noção da realidade de sua personagem.
A esse respeito, devo dizer que a maneira como é abordada toda a temática do estupro é muito incômoda. A liberdade sexual feminina é vista como passível de punição. Embora essa seja a visão de Max, ela acaba por dominar toda a trama. A advogada que flerta com um homem casado e que sai para beber em um bar é agredida por aceitar sair com outro. Opta por não prestar queixa “pois conhece os sistema” e sabe que seria humilhada se o fizesse. A respeito da adolescente que foi sua primeira vítima, fala-se diversas vezes que mantinha “comportamento promíscuo”, como se de alguma forma isso justificasse o mal que lhe foi impingido.
O tratamento mais perturbador é dado à Danielle, retratada com extrema inocência, beirando a estupidez (de uma forma que dificilmente uma menina de quinze anos seria) quando o assunto é sexualidade, ao mesmo tempo em que sempre aparece em situações erotizadas, seja com as alças da blusa displicentemente caídas, desnudando os ombros, seja aparecendo de calcinha. A maneira como ela parece não saber nada relacionado a sexo e ao mesmo tempo aparece como objeto de desejo quase infantil em tela é no mínimo reprovável.
Em alguns momentos fica patente que o filme é dirigido por mãos competentes, mas o resultado final é muito aquém do esperado, não fazendo jus ao diretor, mas condizente com o zeitgeist.