Um cenário, dois atores e não muito mais que isso. Quase aos oitenta anos de idade Roman Polanski dirige um filme que é pequeno, mas não por isso pouco complexo ou interessante. A Pele de Vênus possui diversas camadas. Em 1870 Leopold Ritter von Sacher-Masoch publicou seu livro A Vênus das Peles, polêmico romance envolvendo os personagens Severin e Wanda, que deu origem ao termo masoquismo. Em 2010 o livro foi levado para um peça off-Broadway, com roteiro de David Ives. Mas não era uma adaptação comum: era a história de um diretor de teatro que pretendia encenar uma adaptação do livro. O sucesso foi tanto que ela foi transferida para a Broadway. E então Polanski decidiu adapta-la ao cinema, com roteiro escrito por ele mesmo e Ives. Partindo desse ponto temos um livro dentro de uma peça dentro de um filme.
Mas as camadas não param por aí. Na trama o diretor, chamado Thomas, é um personagem machista, que já começa a história reclamando que não consegue encontrar uma atriz que interprete sua Wanda. Segundo ele, as atrizes jovens portam-se como crianças, quando no passado já seriam casadas e com muitos filhos. Além disso metade delas seriam lésbicas e metade vadias (nesses termos). Até que uma mulher chega atrasada para audição e se apresenta com o nome de Vanda. Acontece que Vanda é interpretada pela atriz Emmanuelle Seigner, que é esposa de Polanski. Já o ator que interpreta Thomas, Mathieu Amalric, é muito parecido fisicamente com ele. Esses fatos acrescentam mais camadas de desconforto, estranhamento, estupefação e, mesmo, diversão à obra.
À primeira vista Vanda parece uma mulher sem muitos conhecimentos e um tanto quanto tola no entendimento das coisas. Mas as aparências enganam e ela veio muito mais preparada para a audição do que percebemos em um primeiro momento. Thomas concorda em ler a parte de Severin para que ela possa representar Wanda. E Vanda cresce, estabelecendo uma dinâmica de provocação baseada em um jogo de “morde a assopra” que parece querer a dominação de Thomas. Do figurino da personagem no filme e na peça dentro dele, ao seu comportamento incisivo e questionador, tudo delineia o contorno de uma postura pautada no BDSM.
Como a peça original é do século XIX, em alguns momentos situações que soam machistas e ultrapassadas surgem em cena, de maneira a deixar quem assiste com a sensação de que algo não está certo. São nessas horas que a própria Vanda tece críticas pesadas: “Essa peça é degradante e pornográfica. Uma donzela em perigo submissa!”. Mas se a Wanda da peça é percebida como submissa, na encenação da Vanda do filme e de Thomas os papéis são literalmente invertidos.
A atuação da dupla, especialmente Emmanuelle Seigner, é o ponto forte do filme, uma vez que eles só tem uns aos outros e alguns poucos elementos de cenário para se ancorar. Além disso, despido de todos os seus subterfúgios, A Pele de Vênus é, ainda, uma narrativa que parece tecer um discurso feminista. E, de qualquer forma, pensar nesse diretor que fetichiza a assertividade de sua esposa expressa através da atuação dela, em um papel em que brinca com as expectativas de um personagem que funciona como um alter ego dele mesmo, não deixa de ser uma experiência fascinante.
Gostei bastante do filme. Camadas em cima de camadas. Interessante perceber como o roteiro cria de forma envolvente um paralelo entre a “vingança” de Vênus – disfarçada de Vanda – imposta ao personagem do livro e a “lição” que uma Vênus contemporânea impõe a Thomas. Um paralelo que se aproxima e se distância a todo instante de forma elegante e ambígua. Divertido, envolvente, desafiador e inteligente. 4,5/5
É bem isso, Thiago! Esses paralelos é que tornam o filme, pelo menos pra mim, mais do que um confronto entre os dois personagens, trazendo uma dimensão maior, para além daquele espaço-tempo. Volte sempre! 😉