Meg, Jo, Beth e Amy já foram protagonistas de diversas adaptações cinematográficas ou televisivas do livro Mulherzinhas, publicado por Louisa May Alcott em 1868. Aqui elas são interpretadas por Emma Watson, Saoirse Ronan, Eliza Scanlen e Florence Pugh, respectivamente. Greta Gerwig, que escreveu e dirigiu essa versão, tomou liberdades que se mostraram frutíferas para a história.
As quatro irmãs March vivem com sua mãe, Marmee (Laura Dern), em uma casa simples, por onde paira a lembrança de uma época em que tiveram mais dinheiro. O pai (Bob Odenkirk), está ausente, na Guerra Civil. Sua figura se materializa nas cartas que envia, mas, no final das contas, aquela é a casa das mulheres March e ele apenas pontua esse fato. Marmee é um exemplo para as meninas, abnegada e sempre preocupada com os demais. Meg, a mais velha, é ajuizada, um professora dedicada e tem grande apreço pela moda. Jo é a menina das letra, tomboy da casa, com os dedos manchados de tinta, sempre envolta em suas histórias. Beth, nas palavras delas mesmas, é a melhor de todas: doce, tímida e encantada pela música. Por fim, Amy é autocentrada, impulsiva e se interessa por desenho e pintura. Juntam-se a elas a rica Tia March (Meryl Streep), o vizinho Mr. Laurence (Chris Cooper) e seu neto Laurie (Timothée Chalamet).
O filme, como o livro, faz recortes de pequenos momentos da rotina das irmãs. E é aqui que Gerwig faz sua primeira subversão na estrutura da narrativa. Tradicionalmente o livro tem duas partes, o próprio Mulherzinhas e a segunda, que se passa 7 anos depois, chamada Good Wives (Boas Esposas, título dado na época pelo editor e não por Alcott). Ambas sempre são publicadas em um livro só e levadas as telas como tal. A diretora optou por trabalhar as duas linhas de tempo em paralelo, criando um passado que, embora não sem seus conflitos, era feliz na união de todas aquelas mulheres. No presente o que vemos são as dificuldades de cada uma já em sua vida adulta. Esse contraponto é externado esteticamente, seja na luz amarela com que os flashbacks são iluminados, em contraste com a luz fria do presente, seja pelo figurino da sempre louvável Jacqueline Durran, que concentra tons de rosa e vinho no primeiro momento e azuis e roxos no segundo, destacando cada linha temporal, também, com o contraste entre tons quentes e frios de uma mesma paleta de cores. Essa contraposição entre os dois momentos faz com que quem assiste ao filme possa entender o ponto de vista das personagens sobre seu próprio passado e ajuda a justificar determinadas escolhas. Nesse sentido, como somos apresentados a Laurie por meio de Amy, o que acontece entre os dois não parece tão abrupto, como seria em uma narrativa linear. Também permite que certas cenas do tempo presente espelhem as do passado com resultados diferentes, como quando Jo desce as escadas da casa correndo e se depara com a mãe sentada à mesa em duas situações diferentes, com uma mudança marcada de tom.
Em se tratando do já mencionado figurino, outros elementos chamam a atenção. Destaco o casaco verde militar com detalhes dourados de Jo, que remete à própria guerra que se desenrola; a cena em que a personagem, vestindo ele sobre camisola branca e calçolas vermelhas, estampa em si as cores do Natal, lembrando-nos que se trata de um filme festivo, especificamente natalino e, claro, o ostensivo uso de tricô.
A segunda das mudanças marcantes criadas por Gerwig é a abordagem metalinguística: Jo, que funciona como narradora em primeira pessoa, é escritora e a história se desenrola em sua versão dos fatos. Com o avançar do tempo, percebemos que o que vemos nos flashbacks são fruto de sua escrita, reminiscente sobre aquela época. Dessa forma os aspectos religiosos do livro podem cair fora da trama, porque seu editor afirma que “moral não vende hoje”. Por isso também se cria um embaralhamento entre a personagem e a própria autora, Alcott, que aparece refletida na trama, que por sua vez se transforma em seu próprio livro real. Sem confusão, essa camada extra celebra a capacidade criativa e o próprio exemplo da escritora, espelhando-a em Jo.
A construção das relações entre as protagonistas, desenvolvendo suas afinidades e rusgas, faz com que criemos facilmente identificação com cada uma delas. As conexões de Jo com Beth e Meg com Amy, mediadas por Marmee, se espelham e se equilibram. E se Amy poderia facilmente ocupar o papel vago de vilã, o texto mordaz, que coloca frases divertidas e sinceras em seus lábios; bem como a atuação cativante de Pugh, salvam-na de tal papel. Além disso, ela, assim como Jo em alguma medida, é a responsável por algumas análises certeiras sobre as condições e os direitos das mulheres de então, especificamente o matrimônio e, com isso, suas ações se externam adequadas à lógica da personagem.
Mas Jo, acumulando a função de narradora, acaba por ser a heroína: aquela que se emancipa e tenta a vida em Nova York, a que comemora a cada pagamento recebido por algo que escreveu, a que a princípio não tem interesse em um relacionamento amoroso como se espera dela, mas que também sente profundamente a solidão. Saoirse Ronan acerta ao não interpretá-la com dureza, como ocorreu em algumas encarnações anteriores, mas sim com uma obstinação que não deixa de permitir que alguma fragilidade se manifeste.
Por fim, o editor de Jo diz que a protagonista dela precisa ser uma mulher e estar ou casada ou morta no final, afirmando que meninas querem ver casamento e não consistência. Em se tratando de romance, Laurie é quase como uma lembrança da juventude, de quando as coisas pareciam fáceis, mas escondiam suas complexidades. Jo sempre esteve certa a esse respeito. O rejuvenescimento de pretendente do presente em relação ao livro, Professor Bhaer, vivido por Louis Garrel, ajuda a colocar em perspectiva as escolhas da personagem. Apesar disso, o romance parece isso: um anexo planejado por um editor em uma história que trata dessas mulheres.
O Adoráveis Mulheres de Greta Gerwig é encantador na forma como dispõe de suas protagonistas e nos permite imergir nas suas vidas e nas suas alegrias domésticas. Ao mesmo tempo, traz reflexões sobre independência financeira, autonomia, ambição e a busca por uma carreira que, já presentes na obra de Alcott, continuam ressoando na contemporaneidade. As decisões artísticas e narrativas da diretora fortalecem a história original, amplificando suas qualidades. Mas, no final das contas, a maior qualidade do filme talvez seja o fato de que Gerwig realizou todo esse trabalho complexo de adaptação e reconstrução do formato da narrativa de uma forma que parece sem esforço, confeccionando uma obra acessível e em certa medida familiar, de aparente simplicidade e deliciosa de assistir.
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