Estante da Sala

Os Primeiros Curtas de von Trier

Um dos aspectos mais interessantes de assistir a trabalhos antigos de certos diretores é conseguir ver ali características que marcariam sua obra posterior já amadurecida. O diretor dinamarquê Lars von Trier teve uma produção bastante precoce. Desde cedo tendo em mãos uma câmera 8mm, produziu diversos filmes curta metragem ao longo da adolescência e juventude, vários dos quais estão disponíveis na internet.

O primeiro deles é The Trip to Squash Land (Turen til Squashland, 1967). Trier tinha, então, 11 anos de idade e a animação em stop motion é uma demonstração de fervilhante criatividade de sua mente ainda infantil. Ele já tinha plena noção do movimento dos elementos que aparecem em cena e a narrativa é suficientemente coesa para uma trama de dois minutos.

Depois disso, há o filme chamado Why Try to Escape from Which You Know You Can’t Escape from? Because You Are a Coward (Hvorfor flygte fra det du ved du ikke kan flygte fra? Fordi du er en kujon, 1970). Com 14 anos, Trier parece experimentar com a montagem. A trama não tem muitas explicações: uma pessoa com a cabeça enfaixada que começa a história deitada na calçada começa a perseguir o protagonista. O diretor já tem a noção de como fazer cortes para mostrar a mesma ação em sequências de planos, bem como a inserção de elementos expostos de forma frenética para causar tensão. Há a inserção de sons, como falas, risadas e barulho de respiração. O filme não tem nada de excepcional, mas mostra uma tentativa de brincar com a forma.

Em The Flower (En blomst, 1971), continua a experimentação com a montagem e o uso de sons, com destaque para a trilha sonora composta por música erudita, como viria a fazer anos depois em Melancolia e Anticristo, por exemplo. A relação do ser humano com a natureza e o trágico como temática já estão presentes.

Trier já tinha 21 anos quando fez The Orchid Gardener (Orchidégartneren, 1977): dez anos a mais do que nas suas primeiras brincadeiras quase que psicodélicas. A depressão do diretor parece já transparecer, tanto na narrativa quanto na estética. Ele mesmo interpreta o protagonista, um artista chamado Victor que está internado em sanatório. Sua arte está esgotada e não consegue mais produzir. Nesse local conhece duas enfermeiras e com uma delas estabelece uma relação de BDSM, como em Ninfomaníaca, anos mais tarde. Em certa passagem uma mãe negligencia seu bebê enquanto toca o próprio corpo, lembrando que tanto em Ninfomaníaca, novamente, quanto em Anticristo, as protagonistas fazem o mesmo em virtude de experiências sexuais, sendo que o primeiro questiona o papel obrigatório da maternidade. Há o uso de música folclórica alemã, cantarolada por uma personagem. Trier se despe: é o artista nu que, deprimido, se vê exaurido e não produz arte. A fotografia em preto e branco (ou pelo menos monocromática) marcaria parte de sua obra inicial (Befrielsesbilleder, Elemento de um Crime, Europa).

Funcionando quase que como uma extensão de The Orchid Gardener, Nocturne (1980) também lida com emoções pesadas: dessa vez é o medo paralisante. A personagem principal tem uma espécie de sensibilidade à luz e por isso não quer viajar no vôo que tem marcado para de manhã. Teria relação com o medo do próprio Trier de andar de avião? Durante a noite conversa aos sussurros com uma pessoa que tenta convencê-la a ir. Tudo é escuro, mas uma lâmpada destaca-se, vermelha. O uso de elementos coloridos isolados seria feito pelo diretor posteriormente em seu noir Europa. Aqui o clima é criado através de uma música de David Bowie, Subterraneans. Uma lágrima escorre pelo rosto da personagem. A claridade do nascer do dia torna amarelado o amanhecer cheio de pássaros voando livres, enquanto ela os observa com sua mala ao lado. Medo em oposição à liberdade.

Por fim, há Befrielsesbilleder (1982), que foi o trabalho de conclusão de curso da faculdade de cinema que von Trier cursou na Universidade de Copenhagen. Esse se tornou o primeiro filme estudantil a passar nos cinemas na história do país. É dividido em três partes compostas por cores sólidas: primeiro é vermelho, depois torna-se amarelo e por fim, verde. A trama é um pouco difícil de captar: trata-se de uma história sobre sobre a ocupação nazista durante a segunda Guerra Mundial e sobre os seus prisioneiros. Elementos de trabalhos posteriores que aparecem são a relação com a natureza (que aparece através da conversa com os pássaros), o desespero, a dureza e a sensitividade, bem como o uso marcado de músicas (tanto eruditas como populares). É possível claramente perceber como esse trabalho se desenvolveu para depois tornar-se, esteticamente, Elemento de um Crime, e tematicamente Europa. 

Em todos os curtas de Lars von Trier é possível enxergar um jovem diretor em busca de seu própria estética. Os roteiros escritos por ele não focam na trama propriamente dita, mas se preocupam com a criação de determinadas atmosferas e essas sim nos fazem mergulhar na narrativa. Facilmente as imagens, aliadas ao uso experimental de som, despertam emoções no expectador. O jovem, que já parecia lidar com a depressão, aborda temas pesado e intensos, explorando as possibilidades visuais que eles trazem. Esses elementos são facilmente identificáveis em sua obra posterior, tanto na etapa considerada europeia quanto na internacional.

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