Estante da Sala

[8º Olhar de Cinema] Daniel

Esta crítica faz parte da cobertura do 8ª Olhar de Cinema- Festival Internacional de Curitiba, que ocorre entre 5 e 13 de junho na cidade. 

Com apenas uma hora de duração, Daniel, dirigido por Marine Atlan, é uma obra que consegue abordar temas de importante discussão contemporânea de forma delicada e envolvente. O protagonista que dá nome ao filme é uma criança travessa, que, junto com seus colegas, prega peças para roubar chocolates ou espionar professores.

Em um dia atípico, saindo da enfermaria após um sangramento em seu nariz, Daniel se perde em corredores internos da escola, chegando a uma porta que se conecta ao fundo do vestiário. Ele abre a porta e lá está Marthe, uma menina de sua classe, semi-nua, vestindo apenas uma calcinha e se preparando para colocar o figurino da peça que ensaiam. Como se fosse inevitável, Daniel abre a porta aos poucos para poder espiar o corpo da menina. A câmera subjetiva encarna o olhar do menino, representando o male gaze. Os dois nunca são enquadrados no mesmo plano, deixando clado o cuidado da execução da cena com as duas crianças. Ele se aproxima como se fosse isso que ele devesse fazer. Mas, quando já está dentro do recinto, vira-se de costas, agacha-se no chão e fecha os olhos, como se não conseguisse sustentar o olhar.

Marthe, por sua vez, percebe a presença do colega e se cobre com o figurino, abraçando-o contra o corpo. Mais tarde, em um intervalo do ensaio, ela volta ao vestiário, retira ele e se observa no espelho, com as costas nuas abraçando o traje na frente do corpo, como que para analisar o que ele teria visto. De cetim branco, com borla de plumas e muito comprido, o vestido é adulto demais para uma criança.

O filme promove um exercício interessante ao mostrar Daniel atraído pelas possibilidades da masculinidade tradicional, pelo poder de exercer o uso do olhar que rouba e do controle do corpo de Marthe. Mas diante desses poderes, ele recua, sente remorso, sente incômodo e pede desculpas. Marthe, por sua vez, explora com curiosidade a possibilidade de ser o objeto a ser capturado pelo olhar de outrem, o corpo desnudo que passivamente é assimilado. Mas depois de praticar o autorreconhecimento no espelho, assume o papel oposto, de agente que não aceita esse lugar refém do desejo alheio e não se conforma ao papel esperado de ser aquela que o olhar rouba, o corpo a ser observado.

A peça encenada pelas crianças, com temas maduros demais para elas, como a morte e o amor, e uma execução desajeitada, faz com que as interações entre elas adquiram um senso de estranhamento, que flerta com um clima onírico. Isso acentua a sensação de deslocamento em relação aos temas apresentados.

Embaralhada à questão de gênero, a diretora traz outro tema contemporâneo: o do terrorismo. As expressões artísticas das crianças são interrompidas pelo treinamento de sobrevivência para caso a escola fosse invadida por um atirador. Para os meninos, é o frenesi do medo do outro, do estranho, do desconhecido. Daniel, que tinha flores secas no vaso em casa e viu a funcionário da escola ajeitar flores frescas em um vaso na enfermaria, visualiza flores crescendo projetadas no corpo nu e encolhido de Marthe. Ele a enxerga como uma figura oprimida por ele mesmo. Para as meninas, o terrorismo não é o outro, é o próximo. É o olhar do colega ou amigo que quer lhes tolher a vontade própria e o direito sobre o próprio corpo. Mas crianças como Marthe aprenderam a dar um basta e ela mesma não se vê aprisionada pela opressão.

Daniel é um filme que aborda o olhar masculino de forma complexa, como deve ser. O personagem-título sente o peso do embate entre aquilo que lhe é dado como um direito na sociedade e sua própria noção infantil dos direitos de Marthe. Ela, por sua vez, também sabe que se espera que disponha de sua beleza para ser admirada sem protestos, mas reclama para si o direito de negá-lo. Os medos subjetivos das crianças, bem como o lúdico de sua expressão são lindamente confeccionados pelos atores mirins. Em um espaço de tempo tão curto, o filme diz muito.

Nota: 4 de 5 estrelas
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