Estante da Sala

Figurino: Amantes Eternos- a invenção de um oriente exótico

Texto originalmente publicado na coluna Vestindo o Filme em 08/05/2015.

Quem não sonhou a terra do Levante?
As noites do Oriente, o mar, as brisas,
Toda aquela sua natureza
Que amorosa suspira e encanta os olhos?
(Trecho do poema O Cônego Filipe, de Álvares de Azevedo)

A citação inicial dessa análise não vem por acaso. Poeta romântico, Álvares de Azevedo segue os preceitos da escola literária, entre eles a exaltação da natureza, a visão trágica do mundo e a idealização do assim chamado Oriente. Adam (Tom Hiddleston) e Eve (Tilda Swinton), os protagonistas de Amantes Eternos (Only Lovers Left Alive, 2013) são, cada um à sua maneira, românticos incorrigíveis. Dirigido por Jim Jarmusch, o filme conta com figurino de Bina Daigeler.
Adam e Eve, como os próprios nomes já indicam, são amantes há séculos, talvez mesmo desde o princípio dos tempos, e são opostos que se completam. Geograficamente isolados, ele mora em Detroit, nos Estados Unidos, e ela em Tânger, no Marrocos. As cidades não poderiam ser mais emblemáticas para a definição dos personagens: enquanto ela, otimista, é rodeada por cores e texturas de um Oriente ideal, ele, já desiludido com a humanidade, a quem chama de zumbis, mora em uma cidade-fantasma, fruto de uma política fracassada de industrialização.
Embora fale com desprezo sobre Byron e Shelley, dois dos mais influentes poetas do romantismo anglófono, Eve talvez seja a mais tradicionalmente romântica dos dois. Rodeada por seus livros, sua cama é adornada por tecidos vistosos. Em casa, veste túnicas e trajes bordados que remetem ao Orientalismo que marcou fortemente a literatura e as artes em geral no século 19. A pintura europeia desse estilo retratou vivências, roupas e arquiteturas de lugares distantes. As cores e os padrões de estampa se refletem no viver de Eve.

Um oriental de turbante, pintura sem data de Gabriel Morcillo.
Um oriental de turbante, pintura sem data de Gabriel Morcillo.

 

A grande odalisca (1814), quadro de Jean-Auguste-Dominique Ingres.
A grande odalisca (1814), quadro de Jean-Auguste-Dominique Ingres.

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Nessa época, o Oriente era tudo aquilo que era oposto aos padrões europeus: do norte da África ao Leste asiático, passando pela Ásia Menor. Tânger certamente se encaixa nesse critério. E se Oriente era um lugar imaginário, inventado e exotizado pelo olhar ocidental, não deixa de ser curioso que pelas ruas da cidade ninguém se veste como Eve: seu figurino faz parte da forma como enxerga o mundo, e não de como o mundo realmente é. Na rua, o que veste são roupas minimalistas, de cor clara, mas cobrindo a cabeça e o rosto com um bonito lenço decorado com arabescos, ainda ligando-a ao seu lugar.

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Adam, por sua vez, é um apaixonado por música e coleciona instrumentos antigos e raros. Pessimista e melancólico, se recorda de todos os artistas e pensadores do passado com quem conviveu e pragueja contra essa humanidade que conseguiu contaminar tudo, até mesmo sua água e seu sangue. Mas se o pessimismo é romântico, também está presente no rock gótico: há um quê de Robert Smith, da banda The Cure, em seu visual. Veste roupões surrados e puídos de tempos passados. Eve chega mesmo a avisá-lo que um deles tem mais de 200 anos. Sua casa é escura e cheia de objetos jogados pelos cantos: não há nenhuma preocupação com a beleza. Na rua, usa roupas também minimalistas. Todas são em tons escuros de marrom, vinho e preto.

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Ambos precisam de sangue e este está cada vez mais difícil de encontrar. Sua experiência prazerosa de beber pequenas doses, apenas o mínimo necessário, se reflete na expressão facial de entrega, como se um vício estivesse sendo saciado. Eve o consegue em uma sacola de farmácia e Adam se disfarça de médico para comprar em um hospital. O sangue é seu ópio: a droga consumida pelos escritores românticos e que era facilmente encontrada em estabelecimentos médicos.

Gravura intitulada O vendedor de ópio, de autor e data desconhecidos.
Gravura intitulada O vendedor de ópio, de autor e data desconhecidos.

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Quando Eve visita Adam em Detroit, passa a vestir seus roupões para ficar em casa e na rua, troca sua bata branca por outra em um tom de vinho, que vai utilizar até o final do filme. É como se ampliasse a relação com Adam externando o reencontro através da roupa. É nessa visita que fica clara sua grande apreciação pela vida e pela natureza, manifestada, também, em uma crítica a ele: “Essa auto-obsessão é um desperdício de vida. Poderia ser gasta salvando coisas, apreciando a natureza, cultivando bondade e amizade, e dançando. Você tem sido bastante sortudo no amor, porém, se posso assim dizer”.

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Um elemento externo aos dois, que traz mudança de ares na relação, é Ava (Mia Wasikowska), irmã de Eve. Com comportamento de uma adolescente inconsequente, ela zomba dos hábitos antigos do casal, como o gesto delicado com que Eve pede a Adam que retire suas luvas. Mas apesar disso ela mesma não se veste da maneira mais contemporânea possível. Seus trajes são de adolescente, mas de uma adolescência que ocorreu em algum ponto da década de 1960, com vestido de bolinha, estampa floral colorida, sapato de boneca, meia estampada. O efeito pode até parecer moderno aos nossos olhos, mas isso em virtude da constante reciclagem desses elementos na moda atual, não deixando de entregar a vivência passada da personagem.

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Sobre as diferenças entre o casal de protagonistas, Adam não é aberto a novas tecnologias: ainda conversa com Eve através de um telefone antigo e uma televisão de tubo, enquanto ela utiliza um smartphone. Ele usa uma mala antiga de couro e ela uma moderna de alumínio.

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A oposição entre a forma de encarar a vida dos dois aparece já no começo do filme, quando a câmera para em cada um e ambos estão enquadrados em uma inclinação de 45 graus, mas cada um para um lado oposto.

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Além disso, outros elementos visuais frisam suas diferenças, afirmadas na dicotomia entre o claro e o escuro de suas roupas. Elas são destacadas, também, em acessórios, como as luvas (que ele veste pretas e ela, brancas) e os pingentes que carregam: ele usa um colar com uma caveira branca (cor dela) e ela, por sua vez, usa a mesma caveira em preto (cor dele) presa em uma pulseira. Mesmo em uma partida de xadrez, Eve utiliza as peças brancas e Adam, as pretas.

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Apesar de tudo que foi citado, o que eles possuem é a imensa compreensão um do outro, manifestada através dos tempos em uma conexão sem limites, que fez com que se casassem diversas vezes e que faz com que, mesmo após algum tempo distantes, acabem por se reencontrar. A intimidade é expressa através não só dos diálogos, que demonstram um grande conhecimento mútuo, como de seus corpos, retratados como um contínuo que sempre busca o contato e o entrelaçamento.

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Se o universo é infinito, assim é a relação de Eve e Adam. Conversando sobre uma teoria de Einstein, ele menciona que “Quando você separa uma partícula entrelaçada e move ambas as partes para longe uma da outra, mesmo em extremos opostos do universo, se você altera ou afeta uma, a outra será identicamente alterada ou afetada”. E tal acontece com os dois. Por serem essas partículas universais é que o filme os retrata constantemente vistos de cima, girando, como as estrelas fazem nos créditos de abertura.

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Adam e Eve são vampiros, embora tal palavra jamais seja mencionada no filme. Mas mais que isso, são arquétipos de maneiras de enxergar o mundo: o preto e o branco; o pessimismo e o otimismo. São um yin e um yang que se entendem e se completam na eternidade dos tempos. São o casal primordial. A direção de arte do filme, bem como o figurino de Bina Daigeler, retrata de maneira competente o orientalismo que inspira Eve e a decadência que rodeia Adam. Adam e Eve superam qualquer divergência e se tornam unos, ainda que se mantendo individualidades, atravessando o tempo e o espaço como amantes eternos.

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