Texto originalmente publicado na coluna Vestindo o Filme.
Todas as famílias felizes são iguais. As infelizes o são cada uma à sua maneira (Leon Tolstoi- Ana Karenina, parte 1, capítulo I)
Um clássico da literatura russa, o romance realista Ana Karenina, de Leon Tolstoi, já recebeu uma variedade de adaptações diferentes no cinema. A mais recente, de 2012, é dirigida por Joe Wright e tem Keira Knightley no papel principal. O livro conta com dois personagens principais que se contrapõem e se equilibram. De um lado temos Ana Arkadyevna Karenina, uma mulher urbana, casada com Alexei Karenin e apaixonada pelo conde Alexei Vronsky. Ao longo da história ela passa a viver de uma forma que a sociedade da época julgava imoral. Já Konstantin Levin, em contraponto, é um idealista, pertencente a uma família de riqueza antiga e rural, que vive com simplicidade, ceifando as lavouras junto aos camponeses, em busca de um sentido para a vida, de uma Rússia ideal e do amor de Kitty Scherbatskaya. A vida de Anna ainda é contrastada pela de seu irmão, Stepan Oblonsky, casado com Dolly (irmã de Kitty) e um infiel inveterado.
A trama começa em 1874. Em se tratando do figurino, apesar da obra original contar com vastas descrições das vestimentas, elas não foram utilizadas de forma literal. A figurinista, Jacqueline Durran, misturou referências da moda da década de 70 do século XIX, com suas saias estreitas e anquinhas volumosas; com a alta costura, especialmente derivada do New Look criado pela Maison Dior, da década de 1950, que primava por cinturas estreitas e marcadas com uso de corpete e saias rodadas. Essa discrepância entre as silhuetas é utilizada para marcar os diferentes papéis sociais das personagens.
A Anna do filme, por exemplo, faz uso de vestidos que se aproximam muito mais da representação de 1950 do que de 1870. As saias rodadas, as alças estreitas e caindo pelos ombros, as formas assimétricas e os drapeados que parecem se desmanchar organicamente marcam uma modernidade que a colocam como uma mulher à frente de seu tempo, ainda que com elementos que a localizem no período da história.
Os dois homens de sua vida não poderiam ser mais distintos. O marido, Karenin, veste trajes com corte simples e poucos detalhes. Seu poder não precisa de signos para se externar e sua frieza fica patente na falta de detalhes.
Já Vronsky, jovem e vaidoso, utiliza roupas de inspiração militar (a carreira que segue), com abotoamento duplo e ombros largos, em azul ou branco.
Outras personagens também são chave para a trajetória de Anna. A primeira delas é a Princesa Betsy, que, segundo o livro, sempre se veste com o maior rigor da moda. Ela intermedia os primeiros encontros entre Anna e Vronsky e seu comportamento liberal em relação aos romances é marcado nos trajes. Se Anna é um misto entre os dois períodos utilizados como inspiração, Betsy foge de qualquer rigor de um retrato época, com roupas vistosas que poderiam ter saído da alta costura contemporânea.
Em oposição, a bondosa Dolly, cunhada de Anna, representa o mais próximo a uma representação realista do período. Seu comportamento se rende às convenções, permanecendo ao lado de seu marido infiel, por mais que isso lhe traga sofrimento. À adequação à sociedade é manifestada em sua silhueta convencional.
Em fases diversas de sua vida, Anna vai utilizar trajes em tons frios de azul e roxo. Essa seria sua paleta de cores padrão, que será quebrada nos momentos certos, marcando as mudanças na vida da personagem.
Esta [Ana] não estava vestida de lilás, como tanto teria desejado Kitty. Um toilette de veludo preto, muito decotada, desnudava-lhe os ombros esculturais, que lembravam velho marfim, assim como o colo e os braços roliços, de pulsos finos. Rendas de Veneza guarneciam-lhe o vestido. […] Kitty, fascinada, todos os dias, em imaginação, via Ana vestida de lilás. Mas só agora, ao vê-la de preto, percebia que não apreendera todo seu encanto. Via-a sob um aspecto novo e inesperado. Agora compreendia que o lilás não lhe ficasse bem. O seu grande encanto resultava precisamente desse relevo de sua personalidade. O que vestia passava despercebido. Enquanto um vestido lilás a teria exibido, este, ao contrário, não obstante as suntuosas rendas, era apenas uma moldura discreta que lhe punha em evidência a inata elegância, o encanto, a perfeita naturalidade.
(Leon Tolstoi- Ana Karenina, parte 1, capítulo XXII)
O primeiro momento de impacto em sua vida foi quando aceitou o convite para o baile em que Kitty foi apresentada a sociedade. Todas as jovens em cena vestem-se em tons pastel, mas Anna está de preto, como no relato do livro, embora também seja. Essa peça marca o momento em que conhece Vronsky e se apaixona, marcando seu destino. Ela é construída com a modernidade já citada, repleta de detalhes assimétricos que refletem o estado de espírito da personagem, daí em diante atormentada e sempre torta em relação à sua própria vida. O vestido passa a sensação de que vai cair, tal a fragilidade das alças que o prendem aos ombros e a maneira com o tecido flui organicamente em sua construção. Após dançar com Vronsky, Anna vê sua própria tragédia refletida em um espelho. O filme constantemente nos chama atenção para o desfecho que está por vir.
Sua segunda grande decisão foi comparecer à festa na casa da Princesa Betsy, onde Vronsky também estaria presente. Seu vestido, em um tom fechado de vermelho, tem o corte similar ao preto, mas parece estar se desmanchando ainda mais. As alças mal param nos ombros e mesmo a anquinha é assimétrica, adquirindo o formato de um tecido amarrado à sua cintura. Nesse momento Anna toma conscientemente a decisão de se deixar levar pelo amor e começar um relacionamento com Vronsky.
E se azul e branco são as cores de Vronsky é interessante notar que na sequência da corrida de cavalos, em que ele é o centro das atenções, todos os presentes se vestem nessas cores, o que ajuda, também, a destacar Anna, ainda utilizando em público o azul escuro de seu casamento. Nesse momento ela deixa transparecer aos demais membros da sociedade sua ligação com ele.
Daí em diante, suas roupas serão predominantemente brancas, com exceção do período em que volta aos cuidados de Karenin e, portanto, ao azul. Mas esse branco vai ter sentidos diversos e até mesmo irônicos, marcando fases distintas em sua vivência. À princípio é a cor de uma visão primaveril de amor concretizado, onde tudo vai dar certo e a entrega é total. Passa a ser o branco de uma mulher que se vê casada, mas que não é aceita como tal pela sociedade. Por fim, é a cor da loucura de Anna, confinada em casa, privada de seu círculo de relações sociais, corroída pelo ciúme e tendo como único espelho Vronsky, seu amor, que também se veste branco. Anna se apequena e sua expressão corporal é de quem quer fugir desse lugar e de si.
Mas a narrativa da personagem principal não é feita apenas através de seus vestidos: os acessórios também ajudam a construir sua imagem. A começar pelas joias, todas de marca Chanel, que são visivelmente contemporâneas, como uma estética que diverge do que seria esperado para então. O destaque é o colar com camélias, símbolo da marca, utilizado em mais de uma ocasião.
Outro elemento importante são seus trajes íntimos, que refletem o estado de espírito da personagem, aquilo que não se vê pela aparência exterior. Logo em uma das primeiras cenas do filme, Anna é vestida com o auxílio de uma criada. Camisa, corpete, meias, calçolas, crinolina com anquinha (no chão) e anágua (em um manequim) são todos brancos, em meio a um quarto em um azul claro de calmaria. Anna ainda não havia se dado conta do marasmo que compunha seu casamento e vivia seus dias placidamente. Já ao final, perturbada por pensamentos destrutivos e moralmente condenada por suas ações pela sociedade, como mulher caída, utiliza corpete amarelo com detalhes em vermelho, mesma cor da crinolina. A combinação grita desconforto visual, especialmente contrastando com as paredes em azul intenso de seu quarto com Vronsky, que demonstram o estado conturbado de seu relacionamento.
Mas o mais interessante dentre os acessórios é o véu. Em uma sociedade em que tudo é farsesco e as pessoas vivem de aparências, nada mais razoável que o uso de véu ocultando os verdadeiros sentimentos. Anna, com véus cada vez mais espessos, não permite que os demais a conheçam por inteiro. É significativo do que o momento em que chega em casa e chora ao lado de seu filho dormindo, sem remover o véu, mostrando que nem em um ambiente íntimo ela está livre de suas máscaras.
Levin, o contraponto de Anna na história, veste-se de uma maneira que o aproxima a uma visão folclórica da Rússia. Ele quer se afastar da sociedade urbana e por isso apenas em raras ocasiões se veste de maneira adequada a ela. Na maior parte do tempo utiliza roupas que o aproximam aos camponeses.
Embora o vestido, o penteado e os demais preparativos para o baile lhe tivessem custado muitos esforços, o certo é que Kitty entrava agora no salão de baile tão natural e simples, no seu complicado vestido de tule sobre um forro cor-de-rosa, como se todas quelas rosinhas e rendas, todos aqueles enfeites não lhe tivessem custado, e aos seus, um minuto de atenção. Dir-se-ia ter nascido assim mesmo, já com aquele vestido de tule e aquele penteado alto coroado por uma rosa com duas folhas.
(Leon Tolstoi- Ana Karenina, parte 1, capítulo XXII)
Já Kitty, como boa mocinha da sociedade e interesse romântico do jovem idealista, se veste de branco com detalhes em rosa esmaecido. As cores claras dizem respeito ao seu caráter. Kitty jamais deixou as regras do mundo ao seu redor contaminarem seu coração e mesmo quando as desafia, o faz por bondade e não por egoísmo.
Duas criadas que passavam, voltaram-se para lhe admirar o porte e disseram qualquer coisa uma para a outra em voz alta a respeito do seu vestido: “são verdadeiras”, disse uma delas, referindo-se às rendas. Os rapazolas não a deixavam em paz. Passaram por ela e voltaram a olha-la com descaro, gritando e rindo em voz de falsete (parte 7 Cap XXXI).
Durante as ações finais de Anna, ela volta a usar um vestido vermelho e um véu. Anna já não consegue suportar o peso do julgamento e do escárnio alheio. Novamente a cor vai marcar suas decisões de grande peso emocional. Se antes foi a decisão consciente de embarcar em uma relação extraconjugal, agora demonstra a turbulência de emoções provocadas por ciúmes, desespero e solidão, antecipando seu final trágico.
Anna Karenina é um romance absolutamente cínico nos seus comentários à sociedade russa e infelizmente parte disso se perde na adaptação de Joe Wright. Ainda assim, o uso de uma estética teatral das ações que ocorrem na cidade, em oposição à naturalidade do campo, pontua adequadamente essa crítica presente no livro. O filme é esteticamente belo, como quase todos os trabalhos de Joe Wright. O figurino de Jacqueline Durran (que já havia trabalhado com o Diretor em Orgulho e Preconceito e Desejo e Reparação) é essencial para a percepção que a plateia tem deste vasto universo de personagens.
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