David Fincher conseguiu novamente: com Garota Exemplar o diretor criou um filme fantástico. Passada uma semana de quando o assisti, ainda não consigo parar de pensar nele e em tudo que ele deixa marcado.
Roteirizado por Gillian Flynn, também autora do livro em que é baseado, seu começo causa certo estranhamento: Nick (Ben Affleck) e Amy (Rosamund Pike) se conhecem em uma festa, entabulando um diálogo espirituoso digno de uma comédia romântica das mais clichês. Mas é claro que algo mais se esconde sob essa aparência: em breve descobrimos que a trama é relatada através do ponto de vista e do diário de Amy, que está construindo uma narrativa com propósitos próprios e claros. É Amy quem nos guia através do que devemos ver e do que devemos entender a respeito da história do casal: o começo romântico e meloso, em meio a uma nuvem de açúcar, passando pelo pedido de casamento surpresa, até a relação descambar para uma certa rotina, em que Nick não mais se esforça e se torna violento e abusivo. Essa forma de conduzir o espectador é brilhante levando-se em conta os acontecimentos posteriores do filme e constroi a tensão adequada para a trama. Ao contrário da crítica Alison Willmore, não senti falta da voz de Nick como contraponto, já que a exclusividade da voz de Amy é a armadilha perfeita no filme.
A reviravolta vem cedo, com cerca de uma hora de trama, e é bastante previsível. Mas com a mudança total de cenários e perspectivas, o interesse na trama se mantém. Aí é que o filme mexeu com minha cabeça. Como escreveu Dana Stevens, trata-se de “um mistério deliciosamente manipulativo, que brinca com o espectador da forma que uma femme fatale brinca com sua presa”. O filme manipula nossa mente, nos faz deixar de lado nossas próprias crenças para rir sardonicamente dos resultados obtidos. Como feminista, devo dizer que as ações de Amy me deixaram desconfortável: uma boa parte de seu discurso e de suas escolhas obedecem aos clichês de masculinistas e ativistas dos direitos dos homens: a mulher manipuladora, capaz de qualquer coisa, mesmo de simular um sequestro ou um estupro para prejudicar seu parceiro, agindo de forma ao mesmo tempo fria e psicótica. Bem, é sabido que em se tratando de laudos, não é possível reportar falso estupro, mas o filme trabalha com essa possibilidade. Por outro lado, Amy é um indivíduo multifacetado em busca de seu lugar. A construção da escalada de suas ações faz sentido dentro do universo do filme, ao mesmo tempo em que no mínimo causam incômodo para o espectador.
Seu discurso sobre a “cool girl” é ao mesmo tempo no ponto e um problema na história. A análise é certeira: é comum vermos mulheres se adaptando aos homens ao seu redor para serem consideradas legais e “um dos caras”. Por outro lado, não leva em conta a possibilidade de muitas delas realmente gostarem de fazer as coisas que fazem. No caso de Amy, ela tenta, através de seu discurso, mostrar como sempre estava lá para Nick, sem jamais reclamar. Mas embora seja bastante compreensiva, jamais chegou ao extremo de moldar-se a ele, conforme sua argumentação, enfraquecendo a própria ideia de que ela teria se cansado de passar por esposa bacana e compreensiva.
A trama também trabalha de forma interessante e incisiva, mas não necessariamente profunda, a espetacularização existente na mídia e a manipulação de imagem que ela é capaz de fazer. Além disso faz comentários ácidos sobre relacionamento, expectativas, intimidade e imagens projetadas.
É interessante ver como Nick se veste sempre como um homem comum, com camisas azuis e camisetas, sem grande cuidado , já Amy está sempre de preto, elegante e moderna. No meio da trama ambos mudam a forma de se vestir e quando Amy reaparece, ela usa tons de bege, emanando certa fragilidade e um modo caseiro. Eles só voltam para suas cores e roupas anteriores, retomando uma dinâmica de casal acordada entre os dois, quando ela entrega uma caixinha de presente para ele, já no final do filme.
Os personagens secundários são muito bons, especialmente o advogado Tanner Bolt (Tyler Perry), a irmã de Nick, Margo (Carrie Coon) e a investigadora Rhonda Boney (Kim Dickens). Se algo ficou um pouco deslocado nessa área foi a participação de Neil Patrick Harris como o ex-namorado de Amy, Desi. Seu personagem não é suficientemente desenvolvido (o que ela fez a ele no passado, por exemplo?) e ao mesmo tempo ele não parece ser o ator ideal para o papel.
A fotografia cinzenta de Jeff Cronenweth é extremamente bonita e, aliada com a câmera quase parada de Fincher, casa com o clima da trama. A trilha sonora de Trent Reznor e Atticus Ross ajuda a criar tensão nos momentos certos e mostra mais uma vez que a parceria entre os dois e o diretor funciona muito bem.
Garota Exemplar é filme tenso, manipulativo, vil e absolutamente hipnotizante e belo. Brincou com minhas expectativas e destruiu temporariamente minhas convicções. Nenhum desses aspectos são incoerentes entre si: todos eles se interligam em um contexto determinado em que isso faz sentido, através da construção narrativa de Amy. Se vários elementos isoladamente não se encaixam ou são dignos de crítica, ao compor a obra final David Fincher conseguiu fazer com que nos desconectemos dessas percepções, ignoremos qualquer deslize e abracemos completamente seu discurso. Trata-se de um filme redondo, com uma trama que faz sentido dentro de seu universo diegético. David Fincher, mais uma vez, criou uma obra que vai ficar no imaginário coletivo por um longo tempo.
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