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Ninfomaníaca é o terceiro filme da trilogia que Lars von Trier criou para lidar com sua depressão (precedido por Anticristo e Melancolia) e foi dividido em dois volumes para lançamento no cinema porque a duração ficou muito longa. É impossível analisá-los de maneira separada (pois fica patente que compõem um filme só), mas ao mesmo tempo há uma quebra de ritmo e de clima em relação ao que é exibido em cada um deles.
Sexo e religiosidade são temas recorrentes do autor. Aqui novamente eles aparecem como protagonistas. O professor Peter Schepelern, da Universidade de Copenhagen, em sua aula sobre o cineasta, afirma que as protagonistas de Von Trier são mártires em mundo pronto para julgar sua sexualidade. Isso se aplica a Bess em Ondas do Destino. O seu pecado é crer nas pessoas e ao crer, fazer sexo com desconhecidos para salvar o marido. A comunidade cristã a rejeita, mas seus atos vem do mais puro louvor infantil a divindade de sua crença (que se manifesta nela falando com voz grave, de olhos fechados). Bess é punida e isolada da sociedade pelo sexo que faz, querendo apenas fazer o bem. É interessante que ela fala que todos nascem bons em alguma coisa e que ela é boa nisso, porque jamais demonstra nenhuma forma de prazer com o ato sexual, nem mesmo com seu marido. Embora se considere boa, ela é apenas um receptáculo do desejo alheio.
Mas Grace, em Dogville, é punida pelo e através do desejo dos outros. Em Anticristo, a mulher protagonista (sem nome) lida com a culpa pela morte do filho, como se fosse uma consequência direta de seu desejo sexual. Em uma simplificação, ela entende que a mulher equivale à natureza e esta é a origem de todos os males. Novamente sexo é usado como punição. O espelho de vênus (símbolo do feminino) é o T da palavra anticristo nos créditos. É difícil enxergar nessas obras o martírio da liberdade sexual e não a punição pura e simples.
Em Ninfomaníaca, parece que Von Trier comenta sua carreira e a percepção que as pessoas tem de sua obra. Embora o filme tenha sido divulgado amplamente como um trabalho beirando o pornográfico, isto está longe da realidade. Joe (interpretada na versão mais jovem por Stacy Martin) encara o sexo com naturalidade. Decide livrar-se de sua virgindade sem grandes alardes e aí reside sua primeira decepção: vai descobrir que os homens a viam como receptáculo do desejo, assim como a Bess. (Percebi que chega, mesmo, a usar o short de vinil vermelho com meia de renda que Bess usa, no início do filme). Isso fica claro quando relembra o número de vezes que Jerôme (Shia LaBeouf) a penetrou, sem preocupações com seu prazer. Suas ações, como a “pescaria” de homens no trem teriam causado estranhamento fosse ela um homem? Certamente que não.
Daí para frente ela agirá quase que por necessidade, parecendo só fazer por prazer realmente após a morte do pai (Christian Slater). Esse momento constitui o único em que parece que von Trier quer chocar e desconecta-se do restante da primeira parte do filme. O pai, aliás, sempre foi compreensivo. Não podava suas brincadeiras na infância (como pretendia fazer a mãe) e lhe mostrava as belezas do mundo, ensinando-a a explorar seus sentidos: veja as árvores, sinta o vento, a vida é prazerosa.
Ainda assim, ela é sua maior crítica: ao ser encontrada ferida e desacordada por Seligman (Stellan Skarsgård), passa a relatar sua vida com culpa e julgando-se errada diversas vezes.
A conversa com Seligman só demonstra novamente que von Trier encara a dicotomia homem versus mulher como a Natureza e Cultura, a dicotomia amplamente utilizada em estudos antropológicos. O homem em questão pontua a narrativa com conhecimentos sobre religião, música, literatura e mesmo pescaria, enquanto a mulher fala de instintos e vivências e desconhece tudo o que lhe é explicado.
A história, como em seus filmes anteriores, é dividida em capítulos, mas von Trier chama atenção para esse ato ao destacá-lo como artificial: Joe nomeia os capítulos observando objetos de Seligman e relacionando-os a sua história. Este não é o único momento em que o autor explicita que tudo não passa de ficção. Em certo ponto Seligman parece ele mesmo se defendendo das acusações que lhe foram feitas ao falar “Ser antisionista não é ser antisemita”. Em outro momento Seligman destaca a improbabilidade de algo relatado por Joe, ao que ela responde que isso não importa, é só uma história, destacando que no final, por mais que analisemos a obra, tudo não passa de linguagem cinematográfica e invenções.
Com o mote “mea vulva, mea maxima vulva” do clube de meninas de que Joe faz parte, fica clara a mensagem de subversão da culpa cristã (que ela absolutamente não possui), como um grito de liberdade daquelas jovens em relação ao próprio corpo.
Mas de certa forma Joe é punida por suas ações, e já sabemos disso ao vê-la ferida, largada em uma rua, ao começo do filme. Mas na primeira parte realmente não parece que isso parta de um desejo íntimo do diretor: a narrativa parece absolvê-la dos pecados que ela mesma enxerga, sendo estes marcados pela sociedade ao seu redor. O filme possui uma leveza impressionante e até certo humor (com destaque para a participação de Uma Thurman como Sra. H).
Assim como há uma troca de atriz (para Charlotte Gainsbourg) , parece que Joe muda sua personalidade no segundo filme. Ao assistir o primeiro não vi uma ninfomaníaca e sim uma mulher aberta aos seus desejos em relação a sexo. No segundo parece que na verdade ela era uma viciada funcional, mas passa a ter problemas em controlar a forma de manifestar esses desejos. A necessidade de ser espancada cada vez com frequência maior pelo dominador K (Jamie Bell), negligenciado o filho de forma perigosa, não parece fazer sentido. A personagem apenas quer se punir por algo que até então não era passível de punição. Não demonstra nenhum prazer com os açoites nem parece ter fetiche com a prática. Seu único prazer consiste no breve momento de masturbação contra os livros em que apoia o corpo. A cena em que seu filho acorda sem ninguém em casa, levanta-se e vai até a varanda juntamente com a composição musical que a acompanha, é uma nada sutil referência a Anticristo. Mas enquanto lá a culpa era da mulher, aqui von Trier ri-se falando “o inocente foi poupado” (mas segue a desconfortável culpa).
Nessa metade também von Trier parece querer chamar mais atenção para o ridículo das situações narradas, como na sequência em que Joe, criança, tem uma visão religiosa.
No primeiro filme, felizmente, não se insinuou nenhuma prática incestuosa entre Joe e seu afetuoso pai. Seria clichê e desnecessário. O incesto acaba aparecendo na segunda parte de maneira indireta. Joe passa a tutelar uma adolescente, P (Mia Goth) que ao chegar a maioridade, vai morar com ela. É esta que faz os avanços, para dor e desespero da própria Joe, que não parecia querer a relação inicialmente. Mas ao envolver-se, surge o primitivo sentimento de posse e com ele o ciúme. E foi isso que a levou a estar largada no beco no início do filme.
Muita gente estranhou o final, mas sendo Seligman a representação da Cultura, é fácil entender que nossa cultura normaliza a violência sexual às mulheres, especialmente àquelas que possuem vida sexual ativa notória. Não destoa do personagem a tentativa de estupro. Ele era apenas um curioso, um teórico que manifestou interesse no que Joe relatou já ter feito com tantas pessoas. A reação de Joe (assim como sua fala no grupo de apoio) ecoa o fala de todas as mulheres do mundo: o corpo é meu, a escolha é minha, a sociedade deveria parar de querer me controlar. A opção por ocultar o desfecho em uma tela negra aumentou o impacto do resultado final.
O segundo filme é menos sobre prazer e mais sobre dor. Ainda assim graças ao desfecho, o que fica é uma mensagem poderosa. Se a personagem principal fosse mais psicológica e mentalmente sã, provavelmente ela seria mais assimilada e aceita mais facilmente. Senti falta da filmagem impecavelmente bonita de Anticristo e Melancolia. Aqui a composição aproxima-se da crueza de Dogma 95. Mas nada que prejudique a obra como um todo. Trata-se de um filme de difícil digestão e que suscita conversas e debates interessantes, o que já é mais que grande parte da produção cinematográfica contemporânea.
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