Paul Verhoeven retorna com Elle, um filme polêmico e aclamado, adaptado do romance Oh…, de Philippe Djian. O auteur provocateur se propõe a criar um suspense com pitadas uma comédia de humor ácido que retrata o suposto jogo de gato e rato entre uma mulher, Michèle (Isabelle Huppert) e seu perseguidor. Michèle é uma poderosa CEO de uma empresa de jogos e se apresenta como uma pessoa forte, dura e distante, o que é comprovado pelas falas de seu ex-marido Richard (Charles Berling). A primeira cena que o espectador testemunha é uma em que essa mulher, até então desconhecida, é jogada no chão, tem seu vestido rasgado e é estuprada por um homem mascarado. A violência e o realismo são brutais. Verhoeven não romanceia o estupro: ele o retrata como o horror que é, de maneira convincente. A personagem não reage com medidas protetivas ou com trauma: ela segue sua vida como se nada tivesse acontecido, contando friamente o ocorrido apenas para os íntimos. Assim o diretor tenta realçar a caracterização de sua força escrevendo-a como alguém que não tem respostas emocionais fortes nem diante das maiores crueldades. À partir daí ela se mostra obcecada pelo seu agressor e pela tarefa de descobrir sua real identidade.
O fato é que apesar dos truques narrativos, colocando personagens suspeitos em torno da protagonista, essa identidade é muito clara desde o começo: a forma gentil com que o vizinho Patrick (Laurent Lafitte) se relaciona com ela o diferencia de maneira suspeita do contexto misógino que a rodeia. Logo percebemos que mesmo seus funcionários mais solícitos guardam mágoas a respeito de sua liderança.
O diretor brinca com elementos utilizados à exaustão em filmes do gênero: a personagem se arma, compra spray de pimenta, mas não deixa de morar na enorme casa que ocupa sozinha, fazendo-nos questionar a clareza de suas decisões. É claro que isso é intencional e visa causar incômodo. Repetidamente ela se coloca em posição de perigo e repetidamente é estuprada em cena, sempre numa tentativa de violentar visualmente o espectador. O problema é que existe um retrato fetichizado do interesse dela pelo próprio estuprador, como se previsse suas ações e mesmo assim estivesse disposta a aceitar o que vem em seguida. O contato entre vítima e abusador é proposta, como já dito, dentro de uma dinâmica de gato e rato, mas quem é gato e quem é rato nesse contexto? O autor parece implicar que é a mulher perseguida quem persegue seu algoz e que ele é praticamente compelido a violenta-la novamente. É como se houvesse uma espécie de consentimento não-verbal por parte dela, e que ele justamente não pode ser verbalizado porque acabaria com a ambiguidade da violência da relação que ela parece buscar. É uma lógica vil quando pensada em paralelo à realidade das mulheres que passam por essa situação. E ela é reforçada pelo desejo pouco oculto que Michèle manifesta por Patrick, mesmo sabendo que ele é casado. As identidades se embaralham, porque ela trata o vizinho e o estuprador como duas entidades diferenciadas, brincando com a duplicidade da vida social versus o que o verniz de polidez pode esconder. E nesse ponto o filme ganha com a atuação de Isabelle Huppert, que faz maravilhas apesar da inconsistência de sua personagem.
O tema do verniz social é bastante explorado no filme e rende alguns momentos em que o que é intencionado como humor realmente funciona, especialmente no que tange às relações familiares. Mas no geral o filme erra no tom. Verhoeven pretende criar uma protagonista que desafie o que se espera de uma vítima de violência, mas não parece ele mesmo entender os laços e contatos que propõem, nem dar profundidade a ela. É difícil não questionar qual é o seu entendimento sobre o conceito de força, já que ele mesmo, em entrevista, afirmou que a criou com tal característica, mas que a atitude de deixar seu marido quando este lhe desferiu um tapa é extrema. Se para o próprio autor colocar-se a salvo e sair de uma situação de violência é algo fora do normal, como esperar que ele consiga processar as reações dos personagens no contexto do estupro? Michèle coordena a criação de um jogo de videogame do conteúdo misógino e não vincula o mundo fictício com a realidade ao seu redor, em que é constantemente atacada em um emprego que é, em sua maioria, ocupado por homens. Essa é a forma do autor tentar criticar a relação entre retratos ficcionais da violência e vivências reais, mas o discurso fílmico é tão mal elaborado que parece justificar o que a personagem sofre. Ao criar uma protagonista inatingível, reduz qualquer tipo de reflexão que possa vir dos atos que o filme retrata. E pior: parece acreditar que criou uma crítica pungente ao colocar essa mulher em posição fetichizada e fetichizante ao mesmo tempo, ao passo em que justifica o subtexto misógino da narrativa e tratando com escárnio a violência real pela qual passamos cotidianamente. A acidez, a ironia e a crítica foram utilizados de uma maneira que não casou com a temática do filme. Verhoeven mirou em Haneke, mas o resultado é irregular e questionável.
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