Aquarius é um filme de inegável relevância para as discussões políticas contemporâneas, especialmente no contexto de uma economia de mercado que atropela os indivíduos, favorecendo a especulação financeira. Sua protagonista, Clara (Sônia Braga), é a última moradora de um edifício à beira-mar que foi comprado por uma construtora com o intuito de substituí-lo por um arranha-céu. Ao retratar essa realidade no contexto de Recife, ressoa histórias como a do Edifício Caiçara e o movimento Ocupe Estelita.
O filme é estruturado em três capítulos: O Cabelo de Clara, O Amor de Clara e O Câncer de Clara e cada um desvela os elementos que dão força à personagem. Na sequência inicial somos apresentados a ela no ano de 1980. Com o cabelo curto, recém curada de um câncer, mostra a seus amigos uma fita cassete com a nova música do Queen, Another One Bites the Dust, antes de seguirem para uma festa de família. A música, nessa mídia específica, marca a passagem de tempo, mas também nos introduz a uma discussão que perpassa por toda a trama: a relação entre a memória e a materialidade dos registros que a ela se vinculam.
Quando, já no presente, uma jornalista entrevista Clara, que pesquisa e escreve justamente sobre música, se foca na questão do analógico versus o digital. A sala de Clara é repleta de LPs, mas ela também pede ao sobrinho que coloque MP3 em seu celular. O que importa não é a mídia, é a forma como a consumimos, como vinculamos cada música a um momento e criamos significados para elas. Clara sabe disso, mas a repórter não parece perceber, dando atenção demais ao formato da música. Da mesma forma, quando os membros mais jovens da família de Clara tiram fotos das fotos guardadas em grandes álbuns, utilizando seus celulares, estão ressignificando suas memórias de infância e encontrando alternativas para armazená-las.
A festa do passado revela que o apartamento hoje ocupado por Clara já havia pertencido à sua tia Lúcia. O figurino ajuda a estabelecer a época em que a ação ocorre. Tudo ainda é carregado de um ar da década de 1970, pois pessoas reais não abandonam suas roupas em uso a cada nova moda. Lúcia sorri ao olhar para uma cômoda que lhe faz recordar aventuras sexuais do passado. A sobrinha, no presente, talvez nem imagine o que viveu a tia, mas vive, ela mesma, suas próprias histórias. É importante como a narrativa trata da sexualidade de mulheres mais velhas, não lhes negando o direito ao desejo. O que traz insegurança à Clara não é a viuvez ou o contato com os homens: é a falta de seu seio direito, removido em uma mastectomia. O seio ausente é desmaterialização de parte de seu corpo sexuado e a sexualidade e justamente algo que ela luta para reclamar de volta.
Durante a festa, os discursos, as conversas, as danças e os parabéns estabelecem um senso de intimidade e trajetória que transmitem o peso que a casa deve ter para Clara: o quanto ela e outros já viveram naquele lugar. Cada ambiente, marcado por uma mescla de móveis de épocas diferentes, da cômoda da tia Lúcia ao pôster de Barry Lyndon na parede, acumula histórias que só fazem sentido ali.
Desse modo percebemos que as quatro paredes que rodeiam Clara tem significados que só dizem respeito a ela. Para os demais, é uma construção velha, um prédio fantasma, um empecilho para o que poderia ser um negócio lucrativo. Do outro lado da luta desigual por aquele espaço está Diego (Humberto Carrão), um jovem ambicioso e arrogante, “formado em business“, que assumiu esse como seu primeiro trabalho na construtora. Seu projeto não leva em conta justamente a trajetória das pessoas envolvidas, talvez por sua própria história ser ainda tão curta.
Em certo momento Clara passa por uma grande construção que parece um galpão e que abriga uma loja de móveis. Afirma, saudosa, que um dia aquilo já foi um grande cinema. Da mesma forma, ao visitar o túmulo de seu falecido marido, se depara com coveiros retirando ossadas antigas para liberar espaço nas covas. Os espaços são constantemente reestruturados para dar lugar a novos sentidos na malha urbana, mesmo que isso signifique abrir mão dos anteriores. Esse é o dilema de Clara: ceder à pressão externa e adotar paredes que nada lhe dizem ou permanecer só em seu apartamento, teimando em frear o que os demais entendem por progresso. E se o edifício é chamado de fantasma, a sensação de ameaça física constante que se cria em torno da personagem é bastante palpável.
Sônia Braga emana firmeza, altivez e intensidade em sua atuação. A empatia criada pela personagem é grande: sua Clara é uma mulher multifacetada, bem construída, com qualidades, defeitos e nuances. A forma como lida com seus filhos e seu sobrinho mostra que ela não se perdeu em suas memórias e dialoga com os mais jovens. A fisicalidade da atriz impressiona e se no flashback inicial temos a personagem com o cabelo bem curto, no presente os fios longos, soltos ou presos de acordo com a necessidade do momento, parecem representar a força com que lidou com o câncer e com que agora lida com seus novos oponentes. Por sua vez, Maeve Jinkings, que interpreta sua filha Ana Paula, demonstra fragilidade e força na medida certa ao contrapor as decisões da mãe.
Clara, por fim, é uma mulher privilegiada: mora em uma área considerada “nobre” pela especulação imobiliária, tem diversos imóveis e contrata uma empregada doméstica, Ladjane, que vem à sua casa diariamente. Sua rotina, agora que já está aposentada, consiste em banhos de mar e cochilos na rede da sala. Seus privilégios deixam claro como mesmo indivíduos bem posicionados são pequenos perto das corporações (até que não são mais). Ao transitar por outros bairros, como quando vai à festa na laje de Ladjane, ela demonstra a aleatoriedade dos limites geográficos entre ricos e pobres: nesse caso o que separa um bairro do outro é um mero cano de esgoto na praia. E se a empregada é tratada como uma amiga, a protagonista, é assombrada pelo fantasma de uma mulher negra que trabalhou para sua família no passado e que, dizem, roubava joias. As complexas relações étnico-raciais da classe média são desveladas nesses pequenos detalhes e finalmente vêm à tona quando Diego, em toda sua branquitude, chama atenção para o que chama de “pele morena” de Clara, que seria contrastante com as posses que acumulou. E embora rica em comparação com os demais personagens, não o é em oposição à construtora.
Kleber Mendonça Filho construiu uma obra que perpassa por questões étnico-raciais, de classe e de gênero, mas de forma tal que elas se entrelaçam na trama nunca chamando mais atenção para esses pontos do que para ela mesma. Ela se desenrola de uma maneira imersiva, gerando ansiedade a respeito de cada ação seguinte. A direção de arte povoa a passagem de tempo de coisas críveis: móveis, músicas, pessoas e suas roupas. Por todos esses detalhes Aquarius é um filme urgente, contemporâneo, necessário e catártico. Catártico, sim, porque às vezes, como espectadores, mas também como cidadãos, precisamos de cinema com um final que não esperaríamos na vida real.
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