Obra é o primeiro filme do diretor Gregorio Graziosi, que demonstra muita maturidade e preocupação estética. Fotografado em preto e branco, captura o céu, a poluição e as edificações da cidade de São Paulo como fantasmas no cotidiano do protagonista. João Carlos Ribeiro de Almeida Neto, interpretado com grande peso dramático por Irandhir Santos, é arquiteto e não herdou de seu avô apenas o nome, mas também o terreno onde se erguerá sua primeira obra.
Ainda na abertura, João palestra sobre a escolha que temos em relação à arquitetura: reformar para deixá-la preservada para a próxima geração ou demolir, abrindo espaço para algo novo. Esses simbolismos espelham os conflitos do arquiteto: entre o herdar e passar adiante o patrimônio sua família ou recomeçar do zero. Além do prédio em construção, trabalha na reforma do interior de uma igreja, reproduzindo essa dualidade.
As dúvidas se refletem em diversos motivos que o cercam: ao preparar o terreno herdado para a construção, descobre ossadas não se sabe de quem. Mas o obra deve seguir e se erguer sobre ele, deixando enterrado o passado.Já sua esposa trabalha em um sítio arquelógico, e lá as ossadas são trazidas à tona, em posição fetal. “Somos enterrados da mesma forma que nascemos”, diz a personagem, sobre esse passado que renasce. De um lado constrói-se sobre a morte, do outro desenterra-se ela.
A maquete de seu edifício revela uma forma cilíndrica, que se lança aos céus em forma de coluna. Ao mesmo tempo, sua própria coluna lhe trai, com dores intensas provocadas pela hérnia herdada do avô. Uma estrutura nasce e a outra se deteriora. Seu pai está já bastante debilitado, mas seu filho está para nascer, e não deseja deixar a ele a história da família.
Ao contrários de outros filmes que abordam a arquitetura modernista como mais um de seus personagens, este não a trata como um fator de isolamento entre os seres humanos. Aqui, os grandes panos de vidro dominam a paisagem e a câmera passeia sem pressa pelas fachadas. Os interiores são vazios e impessoais, mas isso é um reflexo de seus habitantes. O modernismo representa um projeto de viver utópico que, nesse caso, como tudo que cerca o arquiteto, marca um legado para as pessoas e para a cidade.
Em certo momento é possível ver, entre os livros de João, um sobre Paulo Mendes da Rocha, o arquiteto brasileiro que falou: “O que está por trás disto [da arquitetura brasileira], e é fundamental, é a questão de termos uma visão erótica sobre a vida, ou seja, uma visão de vida desejável, não de uma carga a ser vivida; uma visão que por mais amarga que possa ser para um homem, consciente da pobreza de sua individualidade, do efêmero, consegue ainda ser erótica com a questão da humanidade, da formação da linguagem e da monumentalidade de sermos o produto de nós mesmos”. Não deixa de ser interessante ver esse comentário sobre a efemeridade da vida e ao mesmo tempo do produto que somos. Junto a esse livro há outro, sobre o arquiteto Marcos Acayaba, que depois aparece representado na casa dos pais de João, que é um de seus projetos. O próprio COPAN, marco da arquitetura modernista em São Paulo, projetado por Oscar Niemeyer, ocupa um pequeno papel na história. Mas a arquitetura aparece e transborda na tela de outras maneiras: são as paredes, grades, janelas e pilares das mais diversas construções que, o tempo inteiro, emolduram as figuras humanas, colocando-as em escala e perspectiva.
Obra é um filme contemplativo, bonito, que se fundamenta mais nos simbolismos e metáforas visuais que cercam os personagens do que em suas ações. A fotografia de André Brandão é impecável, lavando de branco os elementos em cena. Gregorio Graziosi, que corroteirizou o filme com Paolo Gregori, demonstra controle sobre os sutis aspectos emocionais da trama e confere uma estética precisa para esse retrato que não é apenas da relação entre humano e construído, mas vai além. Ele é marcado pelo ciclo que compreende a necessidade de demolir para construir, de morrer para nascer. E, como na nas primeiras cenas filme, o Arquiteto se dissolve em Arquitetura.