Essa crítica foi escrita em outubro de 2017 para um módulo que ministrei do curso A Crítica de Cinema por Dentro, realizado no SESC.
Depois da abertura ruidosa em que vemos um mestre de cerimônias apresentando o grupo de teatro Chão de Estrelas, o silêncio. Fininha (Jesuita Barbosa), um dos protagonistas, aparece visualmente aprisionado entre as grades das camas de ferro do quartel onde serve, sentado enquanto seus colegas ainda dormem. A dualidade entre o caos e a ordem será uma constante em Tatuagem, que é bonito nas diversas facetas que a palavra pode expressar ao ser aplicada a um filme. Trata-se do primeiro trabalho de direção de Hilton Lacerda, que até então havia trabalhado como roteirista, função também ocupada por ele nessa produção.
O ano é 1978 e a cidade é Recife. Fininha é atormentado por seus colegas porque sempre se esquiva quando eles propõem uma escapada para um prostíbulo. O quartel é um ambiente marcado pela fisicalidade de seus soldados: as roupas são poucas e reveladoras e os corpos se tocam rotineiramente. Mas todo contato é seguido por uma demonstração de masculinidade. A heteronormatividade é uma constante e esses mesmos corpos são regrados, controlados por meio da rotina e por meio da contenção dos desejos.
Em oposição a eles, existem os corpos livres que compõem a trupe do já citado grupo Chão de Estrelas, que alimenta a alma do povo do Recife com suas criações, que vão do teatro ao burlesco. São corpos que se despem, que se pintam, que dançam, que riem e fazem rir e que se tocam sem a necessidade de retroceder no gesto. O filme é recheado das apresentações dos artistas: números musicais, esquetes, declamações de poemas e citações de autores clássicos. Elas se aproximam do público como obras populares, rasgadas e que fogem de linguagens que poderiam ser cansativas.
Certa hora o grupo todo se muda para uma casa onde podem morar todos e ensaiar juntos para apresentações. Os ambientes internos dos locais exibidos são escuros e coloridos, flertando com o brega e o kitsch, também presentes na trilha sonora. O líder criativo do grupo é Clécio (Irandhir Santos), que conta com a amizade e apoio do ator Paulete (Rodrigo García), irmão da namorada de Fininha. É dessa forma que o homem conhece o rapaz.
O romance entre os dois é de uma troca constante. Por um lado, Fininha é mais novo, por outro, parece se entusiasmar com as novidades, enquanto Clécio se envolve de forma profunda. Em um determinado momento Fininha veste uma máscara de inseto e assim fantasiado, sua juventude parece ser destacada. Nesse momento o modo como Clécio se dirige a ele é condescendente. Mas em outra cena Fininha busca por outras experiências e Clécio se enciúma. Mas o Chão de Estrelas é o lugar onde tudo é experimentação e justamente onde os corpos não devem ser reprimidos. O jovem está vivendo uma idade pela qual Clécio já passou há anos. “Ciúme é quando o desejo vira mercadoria”, ressalta outro personagem. E assim ambos os amantes se deslocam e reposicionam dinamicamente no relacionamento.
O fato de ambos já terem se relacionado com mulheres não é comentado e não há necessidade dessa informação. É com essa leveza que a conexão entre eles é abordada. Nas cenas de sexo os corpos masculinos aparecem coreografados com sensualidade, conectados, retratados em abandono total. O sentido é de afeto, exibido nos pequenos atos, nos erros, nos perdões e no crescimento. O toque é fotografado com poesia, captando o brilho de pele na pele.
O envolvimento dos dois levanta outras questões: Fininha é acusado de ser olheiro dos militares e Deusa (Sylvia Prado), mãe do filho de Clécio, diz que não quer que o menino cresça em contato com gente que vai para a rua reprimir. Porque Tatuagem é, sim, um romance, mas também é uma obra que trata do fazer arte e do criar em meio à violência. A ditadura aparece de maneira velada: fala-se na censura, mas no Chão de Estrelas a dor da perda jamais chega de verdade. Aqui é que aparece marcada a dualidade entre a arte e o militarismo, a liberdade e as regras, expressos na oposição entre o modo de vida dos artistas e a rigidez e a truculência da força militar utilizada para extingui-la.
A narrativa contrapõe o poder transformador e a resistência da arte com a força da repressão, que não se limita aos muros do exército, mas que está presente nas ruas, nas casas, na sociedade como um todo. Fininha, no quartel, tatua um C dentro de um coração no peito. Clécio, emotivo, desmorona. Fininha vai para São Paulo e escreve que não consegue emprego como segurança. “Para quem tem tatuagem é mais difícil”. Muito cedo ele aprendeu que a tatuagem é a marca na pele, indelével, de seu amor e que este não seria aceito, mas mesmo assim ele o levaria consigo para todo lugar.
“O Brasil o país do futuro”, declamam os artistas. “Respeitamos nossa mãe, mas amamos nossa pátria”, bradam os soldados. Nada mais contemporâneo do que pensar na arte sendo pautada por valores como família, pátria, moral, bons costumes, que ditam o que é aceitável e que querem definir o que é arte e o que é o belo. Justamente a beleza, essa que se considerava um paradigma superado há bem mais de um século. É como se Hilton Lacerda tivesse previsto os anos que se seguiram ao lançamento de Tatuagem. Quando os artistas, nus, dançam uma música chamada Polca do cu é difícil não refletir sobre o processo que levou, nesses quatro anos, um corpo nu a ser afrontoso e a ele ser negado o status de arte. Mas nem todos os corpos nus são afrontosos: apenas aqueles que não são obedientes nem normativos. Política e Nação intervindo na expressão artística. “Colocar os nossos cus na reta, esses são nossos únicos meios”, afirma um personagem. E talvez sejam.
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