Estante da Sala

Toy Story 4

Talvez eu não devesse ter revisto todos os Toy Story antes de ver esse quarto. Rever o primeiro, lançado em 1995, me deixou com a triste impressão de que Woody era, então um brinquedo que encarnava o papel de masculinidade branca e cisgênero, ao contrário de outros brinquedos que não eram antropomórficos. Woody estava satisfeito no seu local de privilégio como o preferido de Andy, sem se importar com o status secundário dos demais. Até o dia que Buzz Lightyear, uma versão mais aprimorada de masculinidade branca e cisgênero chega para ocupar o seu lugar. Toda a história é sobre esse personagem privilegiado dentre os demais e que não quer abrir mão desse local de privilégio, sem jamais se dar conta que é esse local que faz com que os demais tenham menos importância. Bo Peep, uma espécie de interesse amoroso de Woody, é apenas um esboço de feminilidade tradicional. O fato de o filme ser filmado por John Lasseter, com roteiro baseado em argumento dele (e mais três homens) e escrito por Joss Whedon (e mais três homens) é bastante significativo.

O egoísmo do personagem diminui nos filmes seguintes, Toy Story 2 e Toy Story 3. Ele aprende a dividir seu lugar como o brinquedo mais especial de todos com Buzz (e somente com ele) e coordena os demais na sua rotina. Mas, nesses filmes, o retrato de brincadeiras marcadamente generificadas ainda é presente. Isso em uma série em que virar Ms. Nesbitt em uma mesa de chá é maior humilhação pela qual um brinquedo pode passar, depois de ser abandonado. Piadas com a sexualidade dos próprios brinquedos também existem, da possível heterossexualidade de Buzz explicitada com a ereção de suas asas em sua interação com Jessie ao fato de Ken supostamente ser gay lembrado reiteradamente pelos outros, em piadas forçadas e desnecessárias. As brincadeiras de meninas são retratadas como passivas e Ken é diminuído por ser considerado um “brinquedo de menina”.

Apesar de tudo isso, há afeto e companheirismo entre os brinquedos, que desejam permanecer juntos e servir da melhor forma possível a uma criança. Woody, nesse sentido, como líder do grupo, facilita uma transição suave para que mudem de dono quando Andy vai à faculdade. Dessa vez é uma menina pequena, Bonnie, que interage com seus brinquedos de forma imaginativa. Assim, Toy Sotry 3 havia fechado a franquia de maneira efetiva, mostrando que emboras as crianças cresçam, sempre há a possibilidade de recomeçar sua vida com uma nova.

Entre e filme 2 e 3 Bo Peep deixou o grupo e nunca foi explicado o que ocorreu. Toy Story 4 começa explicando os acontecimentos, antecedendo um reencontro entre ela e os demais. Para que isso aconteça, é preciso que se estabeleça duas situações: o novo lugar de Woody entre os brinquedos e a vulnerabilidade emocional da criança.

Woody não mais é o brinquedo preferido: ele chegou a uma casa que já tem outros brinquedos e é mais um entre eles. O grupo também tem uma liderança, a boneca Dolly, então seu papel de xerife da casa foi perdido. Literalmente, uma vez que, de dentro do armário, ele vê Bonnie, depois de tirar sua estrela e afixá-la em Jesse, brincar com ela como a xerife. Woody agora pega poeira aguardando sua vez de brincar, como todos os outros, e subitamente isso passa a ser algo ruim.

Bonnie, por sua vez, é uma menininha sensível e insegura. Em seu primeiro dia de aula na pré-escola, confecciona um bonequinho com um garfo, palitos de picolé, arames e olhinhos de boneca, todos colados juntos. Garfinho, como é chamado, passa a ser seu companheiro e fonte de coragem para enfrentar os medos. Garfinho é como um monstro de Frankenstein: ele é a união de diversas partes que, com o amor de Molly, tem vida, mas questiona a própria existência. Ele não é um brinquedo, ele é lixo.

A cada tentativa de fuga de Garfinho, é Woody quem tenta recuperá-lo. Mesmo não sendo mais o preferido, ele ainda enxerga isso como uma obrigação. Então, em uma viagem de família feita em um trailer, Garfinho foge para a estrada. Woody vai recuperá-lo e na companhia dele o boneco-talher aprende o quanto é importante para a menina. É nesse contexto que Woody e Bo Peep se reencontram. A pastorinha não é mais retratada como portadora de uma feminilidade tradicional: vivendo há anos como um brinquedo sem criança, livre por um parquinho, ela tem grandes habilidades de sobrevivência. Isso é destacado pelo figurino da boneca, que tira a saia da cintura e a prende no pescoço, como uma capa.

Na aventura de resgate de Garfinho, são apresentados novos brinquedos, como a boneca antiga Gabby Gabby, as pelúcias com mãos costuradas Bunny e Ducky e o boneco motoqueiro dublê canadense Duke Caboom, além de quatro bonecos de ventríloquo. A eles é dado mais espaço na narrativa do que aos brinquedos antigos, mas, com exceção das pelúcias, eles são menos interessantes e carismáticos. Já os antigos pouco aparecem em quase toda a história e ficam basicamente parados esperando.

Embora com toda a preocupação de recuperar o Garfinho pelo bem de Molly, Woody, resolve ficar e ser um brinquedo errante com Bo Peep. Nesse momento é significativo que ela tira a capa e volta a usá-la como um a saia longa e rodada, como se voltasse ao seu papel de companheira do herói, portadora de feminilidade tradicional. Mas, para além disso, é possível refletir que Woody sempre foi o brinquedo mais obcecado por ser especial, por ser o preferido e, por outro lado, por ser leal e querer fazer o melhor possível para sua criança. Por isso é curioso que justamente quando ele passa a ter papel secundário entre os brinquedos de Bonnie (como todos os demais brinquedos tinham com Andy) e, justamente agora que sua dona é uma menina, ele escolha não ficar ao lado dela. O que é retratado como uma libertação do personagem parece, na verdade, muito mais com um retrocesso em sua própria evolução, mostrando-o incapaz de aceitar o papel de coadjuvante.

O mais triste de rever esses filmes, que caminham ao meu lado desde minha infância, é perceber como, afinal, eles falam tanto sobre a insegurança masculina, mas não como uma possibilidade de expressar vulnerabilidade, e sim como a manifestação do desejo por primazia, entendida, basicamente, como um direito. Woody se importa com Bonnie, mas nunca cria com ela o mesmo laço que tinha com Andy. É quase indissociável esse fato da maneira como gênero é apresentado em torno do Xerife desde o primeiro filme e da forma como brincadeiras de menina são retratadas como menos interessantes ou secundárias. É preferível ser um brinquedo livre, sem criança para brincar, do que não ser o principal brinquedo de uma criança, somado ao fato de que essa criança é uma menina.

Quando se trata dos créditos de Toy Story 4, são 8 responsáveis pelo argumento, sendo 3 mulheres (Valerie LaPointe, Rashida Jones e Stephany Folsom) e 2 roteiristas, sendo 1 mulher (novamente Stephany Folsom. A direção continua sendo de um homem, Josh Cooley. Com tantas mãos por trás da história é de se pensar que as ideias se diluam no resultado final. De qualquer forma Toy Story 4, apesar de ser engraçado em certos momentos e emocionante em outros, acaba por desmanchar o final apresentado no 3, ao colocar o protagonista do filme se recusando a aceitar um recomeço em padrões diferentes daqueles do seu passado, embora os demais brinquedos aceitem a mudança. É um filme no máximo simpático, com alguns momentos bonitos, mas que não acrescenta muito à franquia.

Obs: A cópia apresentada na cabine de imprensa era dublada, então me absterei de falar das atuações.

Nota: 3 de 5 estrelas
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1 thought on “Toy Story 4

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